Manual de sobrevivência
Que bom, férias em família! Mas…
Depois de 11 meses a ansiar pelas férias de Verão com toda a família, o paraíso parece estar longe. Ao terceiro dia, se não houver bom senso e imaginação, mergulha-se num inesperado campo de batalha -- com cada um infeliz para seu lado e desejoso de voltar ao trabalho. Relaxe e reaprenda a (con)viver com os que mais importam.
Chegaram as férias. É altura de deixar de lado horários, rituais e obrigações. No entanto, partilhar tanto tempo livre com a família pode não ser tão pacífico (ou idílico) como se esperaria. “Este pode ser um período crítico para as famílias. Fora ou dentro de casa, passar as férias com os filhos pode transformar-se numa experiência desastrosa, caso os adultos não tenham o cuidado de preparar e antecipar as situações”, alerta Vera Ramalho, psicóloga clínica que trabalha habitualmente com casais e adolescentes.
“O dia-a-dia muitas vezes não dá lugar a grandes escolhas e, apesar do incómodo causado pelas rotinas, estas acabam por obrigar adultos e crianças a aceitá-las e a entrar ‘no ritmo’.” Mas, em tempo de descanso, as rotinas não estão lá “para ajudar” ao convívio.
Algumas pistas para desenvolver já a seguir vão ajudar o leitor a desfrutar das férias que merece: esforce-se por conhecer as crianças e considerar os seus interesses; lembre-se de que as relações são para o ano inteiro; aceite que não temos de andar colados uns aos outros o tempo todo e aproveite este período para se aproximar ainda mais de quem gosta. Ou seja, fortaleça as relações com aqueles que realmente importam na sua vida. Relaxe e não complique.
Conhecer os interesses das crianças: check!
Vera Ramalho enumera algumas das preferências das crianças em função da sua fase de desenvolvimento e acentua a necessidade de os adultos as conhecerem e de considerarem os seus interesses quando definem um plano de férias: “Existem variadíssimas opções de férias com objectivos diferentes que devem ser ponderadas em função das possibilidades financeiras e das idades dos filhos. Uma criança de cinco anos prefere as brincadeiras na praia e na piscina e é mais fácil de entreter. Entre os oito e os dez anos, já não acham muita graça em ir para o lugar do costume com as pessoas do costume. Os pais precisam de abrir o leque de oportunidades de lazer ao ar livre, para evitar que se ‘agarrem’ ao computador ou à TV. Entre os 12 e os 13 anos, os miúdos querem mais do que aquilo que os pais querem dar e é fundamental que estes não continuem a pensar que eles são as suas criancinhas. Eles cresceram!” Aí, os desportos são uma óptima opção. “A partir dos 14 anos, os adolescentes podem preferir fazer tudo ao contrário daquilo que os pais querem que eles façam. ‘Vamos a Espanha?’ ‘Que ridículo, os meus amigos vão para o Algarve!’ Acima de tudo, esta é a idade da procura da independência.” Depois dos 16 anos, “ os pais não ganham nada em insistir para que vão todos juntos para a quinta da avó como faziam em criança”. Aqui, o diálogo assume um valor ainda maior: “Talvez seja melhor negociar uma semana em família e outra onde haja mais liberdade para estar com amigos, embora sempre com conhecimento dos pais.” Mas é sabido que as crianças não são todas iguais, qualquer que seja a idade. “É preciso conhecê-las e ouvir o que querem. A maioria pode adorar fazer canoagem, passeios e campismo, por exemplo, mas há as que preferem ficar calmamente em casa a brincar e a receber mais atenção.” Diálogo, negociação e cedências de parte a parte parece ser o caminho. Por isso, diz a autora de “Lá em Casa Mandam Eles?”, “pergunte o que eles querem fazer e tente encontrar uma solução em conjunto”.
Discutir expectativas e desejos entre todos: check!
“Claro que os adultos merecem descanso, e mesmo o mais dedicado dos pais irá irritar-se porque o Rui com 15 anos tem vergonha de ir para o Oceanário com a mãe, o pai e os irmãos; a Ana, de três, quer fazer castelos na areia e à Maria, com oito anos, só apetece ficar em casa a brincar com uma amiga”, exemplifica a psicóloga.
Se os pais não estiverem habituados a passar algum tempo com as crianças, tudo se torna ainda mais difícil. O que fazer então? Como conciliar tantas vontades? “É preciso libertar a criatividade e, sobretudo, negociar. A comunicação, o bom senso e a flexibilidade podem fazer a diferença e proporcionar bons momentos.”
Em primeiro lugar, há que “definir o local de férias e abrir o diálogo às possíveis actividades que este proporciona”. Aí, todos devem ter uma palavra a dizer: “Opinar sobre o que desejariam de fazer, sendo claro que em alguns momentos terão de ceder às vontades dos outros.” Vera Ramalho, que faz parte da direcção da clínica Psiquilíbrios, de Braga, sugere mesmo que se elabore “uma listagem do que cada um gostaria de fazer” e que em seguida se seleccione “as que agradam a todos ou à maioria, tentando satisfazer a vontade de todos os membros da família”.
Se forem para um local onde haja praia e piscina, a negociação pode passar pelas manhãs na praia e as tardes na piscina, por exemplo, caso uns prefiram o mar e outros não. “O importante será o respeito pelo outro e a inclusão de momentos de descontracção em família. A organização e antecipação das situações é outro aspecto importante, pois, quando não há um planeamento sobre o que fazer, criam-se momentos de impasse ou de inactividade e os dias de férias podem transformar-se num calvário.”
Não andar sempre colados: check!
Alexandra Miguel, professora de Educação Especial em Setúbal, recorda como algumas vezes acabou por ceder à vontade dos filhos adolescentes para que tudo corresse pelo melhor. “Agora, tenho o retorno. Eles esforçam-se também por nos agradar, fazendo concessões tal como nós, os pais, tantas vezes fizemos.”
Reconhecendo que nem sempre tudo corre às mil maravilhas, a docente especializada em Intervenção Precoce sugere no entanto que não se dramatize nem se faça “finca-pé” sobre pequenas coisas. E exemplifica: “A minha filha sempre gostou de estar na praia todo o dia, ‘horas e horas’, o meu filho não. Nem eu. O que estipulámos foi, uma vez por semana, pegamos no farnel e passamos todo o dia na praia. Nos outros dias, não. ” Outro exemplo pacífico: “Se alguém tem vontade de dormir até mais tarde, então é deixá-lo ficar. Entretanto, vamos para a esplanada ler o jornal.” Na verdade, em certas idades, já não é preciso andar-se a reboque uns dos outros a toda a hora.
“Se a isto se juntarem tios, cunhados, sobrinhos, primos, as vontades multiplicam-se. E a probabilidade de conflitos também… Mas o convívio entre todos deve ser incentivado.” Cabe portanto aos adultos saber gerir (e evitar) as tensões.
Cultivar relações familiares o ano inteiro: check!
Vera Ramalho sublinha um aspecto fundamental “e que não pode ser mascarado pelas férias”: a relação afectiva que os pais têm com os seus filhos. “Se durante o ano não há proximidade com a criança, não é só no período de férias que isso vai acontecer. Inclusive, o facto de não haver uma relação próxima pode dificultar tudo nas férias. Passar 24 sobre 24 horas com uma ou mais crianças pode ser muito cansativo e até contribuir para aumentar a tensão. É importante que as relações nas férias não se resumam a uma tentativa de ‘tapar buracos’ afectivos que falharam durante o ano. As relações devem ser alimentadas todo o ano, quer se esteja diariamente com a criança quer não. As férias podem e devem ser aproveitadas para criar e sedimentar as relações, mas uma ou duas semanas não é suficiente.”
Também a psicóloga afirma que “as férias não têm de ser três semanas colados uns aos outros”. Há actividades isoladas de que tanto o casal como as crianças irão beneficiar. “As semanas podem ser divididas de maneira a que os pais tenham a possibilidade de estar com os filhos, um com o outro e em momentos individuais. As férias em família durante todo o tempo podem ser uma má opção, correndo o risco de se transformarem em obrigação.” Viva a liberdade de nada fazer, de ver TV ou de simplesmente estar deitado numa espreguiçadeira. “Isso também faz parte das férias e é uma necessidade natural. O casal pode e deve optar por passar alguns dias juntos, sem os filhos, deixando-os ao cuidado de alguém da sua confiança ou num campo de férias.”
O mesmo defende Alexandra Miguel, mais ainda quando o filho do casal precisa de cuidados especiais. “Os pais com filhos portadores de deficiência têm uma necessidade acrescida de descanso e de reservarem tempo para si próprios. Há miúdos que absorvem toda a atenção e energia dos pais durante todo o ano. Durante toda a vida. Seja porque se deslocam em cadeira de rodas, porque não têm autonomia para se alimentarem sozinhos, porque continuam a ter de usar fraldas, a tomar medicação.”
Embora saiba que não é fácil encontrar instituições que acolham miúdos com certos tipos de problemas, aconselha os pais a não desistirem de procurar ajuda junto de familiares e de profissionais especializados. “Não devem sentir-se culpados pela necessidade de ‘descansarem dos filhos’. É humano. Há situações muito difíceis e de grande desgaste, físico e psicológico.”
Resumindo: se houver equilíbrio e vontade, as férias podem ser um período de excelência para unir pais e filhos e uma óptima oportunidade para (re)aprenderem a interagir uns com os outros. “As férias podem fortalecer relações, mas é necessário ‘pôr as mãos na massa’. O facto de irem para um resort e inscreverem as crianças nas actividades propostas nesse local ou deixá-las estar todo o tempo na piscina não é estar com elas. Tudo deve ter o seu peso e medida”, conclui Vera Ramalho.
Por isso há que usar a imaginação: “Recorra a jogos em família. Combine com todos os membros da família que cada um deve inventar uma actividade para um determinado dia e surpreenda-se com os bons momentos que podem viver juntos.” Boas férias!