Entrevista a Sofia Aboim, investigadora do Instituto de Ciências Sociais

"Temos alguma dificuldade em acompanhar a modernidade"

A família mudou e as pessoas acham que foi para pior. Para a socióloga Sofia Aboim isso tem a ver com a rapidez das mudanças

Acham que a vida se tornou mais solitária. E que a família "antigamente era melhor". As mudanças registadas nos últimos anos, na família e no casamento, têm sido tão rápidas que os portugueses revelam alguma "dificuldade em acompanhar a modernidade", diz a socióloga Sofia Aboim. A autora de vários estudos na área da família e conjugalidade, investigadora do Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa, escreveu um dos capítulos do último volume da História da Vida Privada. Nesta entrevista, analisa a sondagem do PÚBLICO.

Os resultados desta sondagem reflectem muitas das mudanças sociais que se têm registado em Portugal. Como é que as lê?

Os anos 90 foram uma década de mudanças muito acentuadas, com mais casais a viver em união de facto, menos casamentos. Agora, o que aconteceu na primeira década dos anos 2000 foi espantoso. Tivemos uma inversão completa, por exemplo, no que diz respeito ao casamento católico. No ano 2000, 65 por cento das pessoas que se casavam casavam-se pelo religioso; em 2009, a percentagem caiu para 43 por cento. Ou seja, entre 1990 e 2000 diminuiu seis, sete pontos percentuais, mas entre 2000 e 2009 diminuiu mais de 20 pontos.

E porquê?  

Porque há um afastamento da Igreja, uma menor importância da ritualização do casamento. Nesta sondagem do PÚBLICO, há um dado muito interessante: as pessoas dizem que o casamento católico não acrescenta nada à conjugalidade. A resposta é esmagadora (75 por cento) e não há diferenças entre pessoas de diferentes gerações.  

E, no entanto, a esmagadora maioria considera-se religiosa... 

O que mostra que a ideia de religiosidade tem vindo a transformar-se. Há uma visão muito diferente da relação das pessoas quer com a vida familiar e com o casamento, quer com a Igreja. Durante muito tempo, achou-se que a religiosidade das pessoas ia cair a pique. Hoje sabe-se que não. As pessoas continuam a achar, como se vê, que são religiosas. O que há é uma religiosidade mais individualizada. As pessoas não vão à igreja, ou vão só quando lhes apetece, ou podem nem sequer ser católicas sendo que, em Portugal, a grande maioria dos que se definem como religiosos define-se como católica. Podem estar à procura do sentido da vida. Por detrás de todas estas mudanças tem que haver necessariamente uma mudança de mentalidades. Se estivéssemos a falar de política, ou de ambiente... Aí as opiniões são geralmente mais voláteis. Já as mentalidades, o que tem que ver com a vida privada, têm tendência a mudar lentamente. Ora nós, em Portugal, estamos a mudar muito rapidamente.  

Pode ser negativo?  

Não diria isso. Estas mudanças têm ocorrido noutros países, nós temos é feito o caminho de forma mais acelerada. Tivemos um regime autoritário muito prolongado, há traços de conservadorismo na sociedade portuguesa, mas, por outro lado, o facto de as mulheres terem acesso a uma autonomia financeira, por exemplo - e temos uma das percentagens mais elevadas de mulheres a trabalhar na Europa -, contribuiu para uma mudança muito rápida. Houve uma grande mudança feita no feminino.  

As pessoas têm clara percepção das mudanças, nomeadamente ao nível da família, mas não é certo que as achem positivas, pois não?  

Há uma pergunta na vossa sondagem que é: "Quais são as principais diferenças na vida familiar?" As pessoas responderam o que quiseram. E, se olharmos para as respostas, há coisas muito interessantes. A primeira delas é que acham que a família está pouco unida. Algo que é referido ainda mais, curiosamente, pela geração mais nova. Diria que esta é uma ideia algo conservadora. 

Porquê?  

Porque implica um imaginário de que, no passado, havia uma família muito unida, coesa, feliz, contra um presente muito mais negro. A "falta de educação" é a segunda grande mudança registada pelas pessoas. 

E o que é que está por detrás disto?

O respeitinho, à portuguesa, aquele respeitinho hierárquico entre homens e mulheres e entre pais e filhos. É referido sobretudo pelas pessoas mais velhas da amostra. As pessoas dizem ainda que há hoje menos convivência familiar, menos valores do que havia, mesmo os mais jovens. Não dizem que há mais diálogo; só dois por cento das pessoas nesta sondagem é que acham que a família está mais unida, e o facto de haver mais igualdade só há cinco pessoas a referi-lo. É absolutamente irrelevante para as pessoas que haja hoje mais igualdade. Para resumir, olhei para todas as respostas [era uma pergunta aberta] e tentei perceber se as pessoas achavam que a família tinha mudado para melhor ou para pior. E a maior parte das coisas que são referidas é negativa. Isto nas três gerações analisadas [dos 16 aos 34 anos, dos 35 aos 54 e pessoas com 55 anos ou mais]. Quando se pede: "Diga lá, assim, da sua cabeça, no que é que acha que a família mudou", há uma visão quase romantizada do passado, como se "dantes é que fosse bom", o que, de resto, é uma tendência que as pessoas têm. Acho que isso é bastante significativo.

Significa o quê?  

Quando se fala em família, o conservadorismo é a reacção mais imediata das pessoas. Uma reacção quase não pensada. Mas, quando vamos ver os relatos de antigamente, era a fome, a miséria, maus tratos entre pais e filhos, maus tratos conjugais. E perguntamos: "Mas que relações eram estas?" Estes inquéritos sobre a família revelam sempre uma ambivalência imensa, talvez, precisamente, porque as mudanças estejam a acontecer de forma muito rápida. Um caso paradigmático é quando se pergunta nalguns estudos se as pessoas acham que as mulheres devem trabalhar fora de casa. Uma enorme percentagem diz que sim, claro que sim. Mas depois pergunta-se: "O trabalho das mulheres é prejudicial para as famílias, para os filhos?" E também dizem que sim.  

E o que é que significa as pessoas dizerem que hoje somos menos tolerantes com as falhas dos nossos companheiros?

Gostaria de perceber se as pessoas acham que isso é bom ou mau. Pode haver a tendência para encarar isto como uma crítica, mas também pode ser algo positivo. Na pergunta sobre se existe um esforço tão grande como no passado para manter um casamento, não há grandes clivagens geracionais, as pessoas tendem a concordar que não há. E isto pode simplesmente querer dizer que pensam que não devem sacrificar-se a todo o custo para manter uma fachada institucional. Acho que estas respostas podem inclusivamente reflectir uma maior importância das relações afectivas.  

Também não podemos ver isto de outra forma: desistimos demasiado facilmente?

Não sei se isso é verdade. Há um dado muito interessante da sondagem: a esmagadora maioria das pessoas acredita que existe uma alma gémea. E a maior parte das pessoas diz que já a encontrou. É "um grande amor na vida", que é superior aos outros, não é a ideia de que pode haver vários amores. Se houvesse um descrédito tão grande nas relações conjugais ao ponto de acharmos que ao primeiro aborrecimento desistimos logo, então teríamos um romantismo em declínio. E não temos. Mas, repare, não haveria conjugalidade moderna sem esta ideia. Antes, o casamento nada tinha a ver com o amor. Foi o romantismo que criou esta relação do amor com o casamento. E o que seria dos romances, do cinema, das novelas, sem este ideal do romantismo!  

Se esta pergunta tivesse sido feita noutros países, seria diferente?  

Eventualmente, não. O mito romântico é fundador, é uma coisa ocidental e que se tem espalhado e que se comercializou - o Dia de S. Valentim é quase tão importante quanto o Natal. Mas as pessoas também acham que hoje levamos uma vida mais solitária do que antigamente: 71 por cento. É esmagador. Mas há que não esquecer que este inquérito foi feito numa altura em que andávamos a falar da senhora que esteve morta em casa nove anos. Acho que há uma ideia global de que há uma solidão maior, uma solidão urbana, porque a família já não é tão grande como era, há menos irmãos...  

É uma ideia ou uma realidade?

Não sei se é uma realidade. É evidente que, se pensarmos no interior despovoado, onde está meia dúzia de idosos, claro que estão mais sós. Mas o número de pessoas a viver sozinhas é diminuto em comparação com outros países (17 por cento, segundo o último Censos) e não creio que vá ser exponencial. A verdade é que o nosso nível de exigência aumentou muitíssimo. Em relação ao que é estar acompanhado, ao casamento, ao consumo (temos que ter mais coisas). Somos uma sociedade material e emocionalmente mais exigente. E há uma ideia de que temos que ter imensa intimidade. É muito frequente as pessoas divorciarem-se e dizerem que não aguentavam os silêncios. A intimidade é uma invenção moderna.  

Temos dificuldade em acompanhar a modernidade?

Nalguns aspectos, temos dificuldade em acompanhar a modernidade... As pessoas frisam que o casamento agora não tem importância nenhuma, que viver junto é igual, que o divórcio se aceita, que os casais do mesmo sexo devem ter os mesmos direitos e que até são muito parecidos com os casais de pessoas de sexos diferentes, mas depois também realçam a negatividade da mudança, por comparação a um passado onde haveria mais comunhão, mais solidariedade. Temos facilidade em aceitar a quebra de valores religiosos, mas maiores dificuldades em aceitar as consequências de um processo de maior autonomia dos indivíduos, que vem com a maior democraticidade, a liberdade e que faz parte, no fundo, da vida moderna. A ausência de regras tão rígidas é vista como positiva; agora uma espécie de maior solidão que ela acarreta, porque estamos menos ancorados em instituições, é algo com o qual as pessoas não vivem muito bem em Portugal.  

Daí a ideia de que somos mais solitários, de que a família está desunida...

Sim. Sermos menos controlados pelas instituições é algo que acolhemos bem. Mas se essa autonomia nos fizer sentir que perdemos um pouco o cimento colectivo, mesmo que isso seja um pouco um mito, as pessoas já não reagem muito bem. Não queremos voltar ao passado, mas temos receio e esse receio não desapareceu na geração mais nova, que também tem essa visão de que a família está desunida e de que estamos mais sós.  

Texto originalmente publicado no PÚBLICO