Joana Bourgard

Alice Vieira na primeira pessoa

As avós têm namorado e perfil no Facebook

Aviso: "Isto não é um manual da boa avó." Mas ajuda a tirar remorsos a quem se julga uma avó má, só porque não está sempre livre para os netos. Frases de Alice Vieira n' O Livro da Avó Alice. Esqueçam o carrapito. Elas agora têm namorado e Facebook.

O Livro da Avó Alice foi uma encomenda. Nunca teria uma iniciativa destas porque é completamente fora de tudo o que tenho feito. É um livro mesmo autobiográfico e nunca escrevi nada autobiográfico. Comecei por dizer que não. Estava um bocadinho aflita. O que é que vou fazer? É uma linha muito frágil, não é? Podemos passar para o ridículo, e eu não gosto. Estava com receio, mas escrevi.

Quando era criança nunca me tinha imaginado avó. É engraçado, tinha-me imaginado mãe, sempre. Avó, nunca. Mesmo depois de ser mãe. Mas, também, o meu filho assim que se casou teve logo a criança, não tive tempo para dizer: "Quem me dera ser avó." Fez-me logo avó nove meses depois.

Quando um dia ao almoço (já lá vão, oh meu Deus, 16 anos!) entre duas garfadas de filetes e arroz de tomate, o meu filho disse

"vou casar em Março"

só não se fez um silêncio daqueles de que é hábito dizer que só se ouvem as moscas, porque estávamos num restaurante bastante concorrido.

O meu marido disse

"passa a água se faz favor"

 e eu, depois de engolir dificilmente a garfada de arroz, fiz a única pergunta que me pareceu importante:

Com quem? (...)

E, meses depois, não só eu era sogra, como também era "avó". (...)

De um dia para o outro mesmo que o espelho nos devolva a imagem de uma mulher ainda nova, razoavelmente elegante, cabelo às madeixas ficamos para sempre presas ao estereótipo que os nossos netos têm de nós: carrapito, óculos, avental, chinelos, bengala e uma leve corcunda a despontar nas nossas costas. (págs. 21-23)

Mas gosto muito de ser avó. Gostei muito que o meu filho não tivesse tido só um. Ele, que foi criado numa família minúscula, tem muito o sentido de família e sempre disse queria ter muitos filhos. Ter quatro filhos, hoje em dia, já é mais do que as famílias numerosas (que é a partir de três). De repente, havia crianças pequenas. O facto de eles estarem muito tempo fora talvez tenha contribuído para a alegria que sempre foi quando nos encontrávamos.

Se eu tivesse sempre os meninos em casa, se tivesse de os levar à escola, ir buscar à escola (se fosse avó a dias...), se calhar não era uma relação tão divertida, tão boa. Porque é isso que eu gosto.

Há pessoas que conheço que têm uma relação com os netos muito rígida. Vêm ao jantar de sábado ou de domingo e depois vão-se embora. Não há muita loucura. E um bocadinho de loucura faz muito bem, uma loucura que estimule a criatividade. Por exemplo, ir passear pelas ruas da cidade e levá-los a sítios, museus que não conhecem. Sem ser com o sentido didáctico pedagógico de no fim "faz uma ficha"... Ir à Baixa é uma coisa que eles adoram. Andar de metro (para nós, tão banal) é uma aventura, tiramos fotografias e tudo.

Com a minha neta mais velha, que está numa idade complicada, 15 anos, tenho uma relação extraordinária. É uma das protagonistas do livro. Quando converso com ela, a ideia que tenho é que somos duas mulheres que por acaso são avó e neta. Eu pensei que só iria ter aquela neta (o meu filho e a minha nora também). Durante quatro anos, ela foi única. Mas depois vieram logo dois, um a seguir ao outro (o Diogo, 11 anos, e o Pedro, 10), e mais tarde a mais pequenina (Isabel, 5).

Quando eu ia a Inglaterra, saíamos muito as duas. Se eu tivesse 15 anos, era amiga dela. Uma vez, ligou-me de Chicago, completamente fora de horas, e disse-me: "Tenho um namorado japonês, mas pode ficar descansada que ainda não é para casar."

Para escrever o livro, fui fazer umas leituras que achei que eram obrigatórias, muitas delas do professor João dos Santos, que eu ainda conheci. Ele estava a dar razão àquilo que escrevi antes de ter lido o que ele tinha escrito. Que é: é muito importante haver uma geração de permeio. Falar com o meu neto ou com a minha neta é completamente diferente de falar com o meu filho ou com a minha filha. Aquela geração é outra e, portanto, eu conto coisas à minha neta que não conto à minha filha nem ao meu filho.

Porque já há uma geração entre nós e é muito mais fácil estabelecer uma conversa com o neto do que com o filho. E eu vejo com a Adriana como isso é verdade. Não é só por não se ser educadora, é por se estar mais livre para contar histórias divertidas. Sei lá, namorados e coisas assim.

Dizia-me a minha amiga Helena, que é um poço de sabedoria:

O problema com as perguntas difíceis não são as crianças, são os pais das crianças. Às vezes ficam muito ofendidos porque os filhos falam comigo de coisas que não falam com eles... Não percebem como uma geração de intervalo entre nós pode fazer toda a diferença!

Uma vez a Adriana, então a passar uns dias em minha casa, no meio de uma história de princesas que eu lhe estava a ler antes de ela adormecer ("eu sei que já tenho 8 anos, mas gosto tanto que me leias uma história!"), interrompeu para me fazer uma pergunta que tinha a ver com sexo. E ali estive, no meu tom de voz normal, a responder a todas as perguntas que ela me fazia. (...)

No fim, ela disse: Pois. As minhas amigas na escola contam coisas muito diferentes, mas eu achei que não devia ser nada daquilo que elas dizem.

Parou uns segundos e rematou:

Podes continuar a ler. (pág. 123)

Se calhar não falamos muito com os nossos filhos. É um bocadinho para manter a nossa imagem, acho que sim. Mãe e filho e filha, apesar de tudo, é mãe e filho e filha. E ali é outra coisa. Já passou muita água, já passou muito tempo e é muito mais engraçado. Mas não é aquela ideia de que os avós podem estragar os netos. Não, não, não. Isso sou perfeitamente contra. Aqui não colhe. Os pais é que dão educação, querem assim e é assim. Mesmo que eu não quisesse bem assim ou tivesse ideia de fazer de outra maneira, não sou nada de "estragar" os miúdos. Eu até acho que eles ficam mais bem educadinhos cá do que quando vão para casa.

Esta casa também é protagonista do livro, pois teve sempre muita gente. Nos idos de antes do 25 de Abril, às vezes era precisa para as pessoas dormirem cá. No outro dia saíam, iam-se embora, nós não sabíamos para onde, nem queríamos saber.

Foi assim que, naquela noite de princípio de Abril, o Armando me apareceu: era muito tarde, eu sabia que ele era do Porto mas nunca o tinha visto, e só o conhecia dos textos que habitualmente mandava para o suplemento "Juvenil" do "Diário de Lisboa", onde eu trabalhava.

- Preciso de ficar aqui esta noite. Só esta noite. Amanhã já me vou embora. Eu não disse nada, abri-lhe a porta, levei-o pelo corredor, mostrei-lhe o roupeiro ao fundo:

- Tens ali roupa, arranja-te como puderes, faz a cama onde quiseres, adeus.

Ele olhou-me, espantado com aquela recepção tão a despachar.

Eu peguei rapidamente na mala que estava junto à porta e só lhe disse:

- Deixa-me, que tenho de ir já para o hospital ter a criança.

A minha filha nasceu oito horas depois. (pág. 47)

E, portanto, sempre houve muitos amigos que precisavam desta casa. De tal maneira que o meu filho era muito pequenino e, como tínhamos receio de que as crianças falassem, não lhes contávamos o que se passava. Mas ele via pessoas que dormiam cá e no outro dia se mudavam. E perguntava-me quando acordava: "Ó mãe, há hóspedes?"

Acho que toda a gente (os meus amigos) tem uma chave da minha casa. Porque às vezes é preciso.

Isto é o meu passado pós-Mário [Castrim]. Quando fui viver com ele, viemos para aqui, esta casa era de todos. Ele também entra no livro. E aí está uma coisa de que eu gosto muito no meu filho. Ele mantém a memória do pai muito viva neles todos, incluindo na mais pequena, que nem conheceu o avô. E no outro, um pouco mais velho, que, quando ele morreu, teria uns dois anitos. Lembra-se mal. Mas todos falam do avô.

Normalmente chegam cá e a mais pequena pergunta: "Posso ir buscar as bengalas do avô para brincar?" Festeja-se o dia de anos do avô (está aí no livro). E fala-se muito dele e de muitas histórias. Mas sempre na perspectiva de "que bom que foi ele ter cá estado, que bom termos estado com ele". O meu filho teve uma relação extraordinária com o pai.

E conta-lhes muitas histórias que depois eles me dizem: "Ó avó, o pai contou aquela história do avô..." E aquilo é uma aldrabice pegada! E eu digo: "Foi, foi..." Porque o meu filho tem uma imaginação delirante e conta muitas coisas que não aconteceram, mas é óptimo. E portanto está muito viva a ideia do avô.

Foi então que, de repente, o Pedro disse:

- O avô não fazia anos hoje?

Admirei-me de ele se lembrar da data, muito possivelmente eu teria feito alusão ao dia e ele tem uma memória prodigiosa.

- Ó avó- continuou ele- e se nós...

Mas parou a meio, ligeiramente embatucado a olhar para os outros.Ocupada a mudar as fotografias das molduras, nem lhe dei muita atenção, confesso.

Mas ele continuou:

-E se nós fizéssemos uma festa?

Eles sabem todos os meus amigos sabem que "festa" é palavra mágica para mim.

(...) Festejar o dia de anos do avô? Mas o avô tinha morrido há tanto tempo, o Pedro nem se lembrava dele e a Isabel nem o chegara a conhecer... Como é que se pode festejar o dia de anos de alguém que já não faz anos?

- 'Bora lá fazer uma festa! digo eu. E começa então uma correria danada, porque é preciso arranjar bolo de anos, e velas, e fazer sumo de laranja, e escolher toalha para a mesa. (...) Tenho a certeza que foi das melhores festas de anos do avô. (págs. 102-104)

Eu voltei [à religião]. É muito engraçado: o Mário era católico, sempre foi, mas dizia: "Eu estou é de mal com a hierarquia." Com a Igreja, a hierarquia, mas continuava católico. A Bíblia é um dos nossos livros de referência, temos uma série de bíblias cá em casa. Ele lia muito a Bíblia e, quando batiam à porta Testemunhas de Jeová, ele nunca as mandava embora. Mandava-as entrar e então começava a conversar com elas. De tal maneira que, passado um bocadinho, eram elas que se iam embora.

Ele foi sempre um homem religioso, de acreditar, e eu... fui sendo. Quando ele morreu, eu fui muito ajudada (apaparicada, que é uma palavra de que gosto muito) pelos missionários combonianos, com quem ele trabalhou durante dez anos e com quem eu trabalho também, que me ajudaram muito.

Sou muito amiga do Tolentino [Mendonça], que tem sido para mim uma ajuda, uma iluminação e tudo o que se quiser, e estas coisas são importantes. E, portanto, eu acho que cheguei mais perto da religião do que estava. Eu acredito muito em sinais. E é estranhíssimo porque o Mário morreu há dez anos e não me lembro de, durante estes dez anos, ter sonhado com ele. Nunca. A não ser agora. E é recorrente. São sonhos tão certos, o que diz, o que eu ouço, que... não sei, mas há-de haver qualquer coisa que me acompanha. Disso não tenho dúvida nenhuma.

Não tenho medo nenhum de morrer. Só tenho medo de ficar inutilizada ou incapacitada, mas viva. Por exemplo, o Alzheimer. Tenho pavor da doença de Alzheimer, e de outras doenças em que nós nos transformamos num fardo para as outras pessoas porque estamos vivos. Não há eutanásia e disso é que eu tenho medo, porque o morrer, se for uma coisa natural, como é, e não trouxer nada disso, se for rápido, acho que não.

Viver é muito bom, mas eu já tive muitas coisas boas. Tive várias vidas muito boas, já fiz coisas de que gostei muito, muito. Conheci gente muito boa. E quando uma pessoa tem assim uma vida muito cheia de coisas boas, se calhar encara um bocadinho melhor a ideia de ter de partir.

Agora, quando não se fez nada, quando se queria fazer e não se pôde, isso deve ser terrível. Não deixo nada por fazer? Deixamos sempre muito por fazer, não é?

Se eu morresse agora, a última coisa que dizia para a posteridade era: "Pelo amor de Deus, não me publiquem nada que eu não tivesse já entregue para publicar. Se há coisa que me aflige imenso, são as obras póstumas. Porque normalmente a obra póstuma não presta. Se o autor não deu para publicar, é porque não quis. Ou então não teve tempo. E se não teve tempo, então não teve tempo de fazer bem como ele quereria. Normalmente, as obras póstumas são um disparate e eu estou farta de dizer a toda a gente que nem obras póstumas, nem cartas. Nada.

Só quero publicado o que está publicado ou então alguma coisa que não esteja, mas que o editor já tenha nas suas mãos. Quando vêm os filhos, os netos, os primos que descobriram na gaveta não sei quê um original, é horroroso.

Não me choca a ideia de morrer, mas não me digam que vou morrer amanhã, deve ser terrível. Que a gente tem de morrer, tem de morrer. Já tive (e ainda tenho) coisas tão complicadas. Se calhar, já me habituei um bocadinho a isso. A minha médica disse-me assim: "Tem de se habituar que é uma doente oncológica crónica. Quando acabar, acabou."

Agora, não faço nada a pensar: "Se calhar vou durar menos, se calhar vou durar mais..." Só fiz isso uma vez. Era mais nova, foi quando tive o primeiro cancro da mama, em que o médico me assustou muito depois da operação, disse que o cancro tinha alastrado bastante. Realmente, assustou-me muito. As hipóteses de vida longa não eram assim muitas e eu aí decidi deixar o Diário de Notícias. E pensei: se eu tenho pouco tempo de vida, então vou fazer aquilo que quero. Escrevi muito mais, comecei a ir para as escolas, enchi-me de muito mais trabalho, porque eu ia ter pouco tempo. Só que isto já foi há 21 anos...

A gente nunca sabe e acho que o que é bom é estarmos bem quando estamos vivos. E neste momento penso que, depois de todas as vidas diferentes que já vivi, sou uma pessoa muito privilegiada. Atingi duas coisas fundamentais na vida. Uma é: não dependo de ninguém. Outra é: ninguém depende de mim. Isso dá uma possibilidade de acordar todos os dias bem-disposta. É verdade.

Os meus filhos, felizmente, têm as suas vidas, os dois. Não precisam de mim. Claro que precisam de miminhos e carinhos. Mas eles não têm nenhuma dependência minha. E eu também não tenho de ninguém, portanto...

Gostava que as pessoas se recordassem de mim de como éramos amigos. Porque eu sou perfeitamente "amigodependente", os meus amigos são muito importantes para mim, não vivia sem eles. Gostava que me recordassem com alegria, detesto coisas mórbidas.

Quando morreu a Matilde Rosa Araújo, estava no enterro e aconteceu-me uma coisa terrível. Disse à minha filha: "Estou a ver o meu enterro." E estava. Quando morrer, vou ter um enterro como aquele. Com umas meninas... Foi aí que dei uma gafe desgraçada... perguntei: "Mas porque é que está tudo com cara de enterro?" E a Catarina disse-me: "Porque é um enterro." Não quero isso.

No funeral do José Maria Tudela (custou-me muito a morte dele), estava eu, o João Braga e outros, a única coisa de que nos lembrávamos era de histórias divertidas com ele. Então, estávamos na Basílica da Estrela, um grupo chocadíssimo, já nos tínhamos fartado de chorar, mas, no meio daquilo, ríamo-nos com histórias: "Lembras-te no dia em que ele fez aquilo e aquilo?" E isso é que prolonga as pessoas na memória dos outros. Como foi bom terem cá estado. Se eles se lembrarem de mim por coisas divertidas, eu gosto.

Neste momento, acho que devia abrandar e trabalhar menos, mas não consigo. E depois ainda tenho o Facebook, que é um vício. O meu grupo de amigos reais tem muitos amigos que começaram por ser virtuais. Encontramo-nos e fazemos jantarinhos. Gosto muito de cozinhar, mas para pouca gente (oito a dez pessoas) e que não seja por obrigação. Faço um frango na púcara e um caril de camarão muito bons. E uma carne assada também muito boa. Gosto de pôr uma mesa bonita, com uma toalha bonita.

Não sei o que é que encontro "lá em cima". Espero que encontre as pessoas divertidas todas que já foram. O que é que eu tenho mais pena de deixar? Sei lá, as manhãs, o mar. Eu gosto muito de me levantar cedo e levanto-me sempre muito cedo. Gosto de apanhar o dia a nascer, é uma coisa... Quando vou para o ginásio, quando é Inverno, às vezes apanho mesmo o dia a nascer na Avenida da República. E o dia a nascer na Avenida da República é uma coisa linda. É isso, eu gosto da claridade. Dos dias, gosto de água e gosto de mar, gosto de tudo. Se calhar vou ter um bocadinho de saudades disso. As pessoas, tarde ou cedo lá irão ter comigo. Espero.

Texto originalmente publicado no P2