Adriano Miranda

Eu e os Outros

Vivemos nas últimas décadas tempos de mudanças significativas, tanto a nível social como familiar. Estas mudanças têm reflexo na educação das crianças e na forma como se relacionam.

Hoje em dia a criança tem um emprego, a escola. Muitas têm até vários empregos e algumas ainda fazem horas extra. Para além da escola, com as suas imposições e metas a atingir, ainda têm que ir até ao centro de explicações ou ao ATL, ou à natação…, sempre com o argumento de ser o melhor e ter mais competências para um futuro risonho. E claro, a dedicação tem de ser total e muitas vezes, como fazem os adultos, o emprego prossegue em casa.

No meio de tanta competência e investimento, a brincadeira vai ficando para trás. Seja com os pais, os irmãos, vizinhos ou os amigos da escola. A dimensão pessoal e social são as mais prejudicadas. A criança permanentemente ocupada, esta criança “perfeita”, fica assim com menos oportunidades para se conhecer, para tomar conta de si, para se autonomizar. O seu dia está recheado de atividades programadas e previstas. Para serem compensadas vão sendo entretidas com os inimigos do costume: a televisão e os videojogos, motivo de tantas zangas e conflitos familiares. A criança não tem oportunidade (como tiveram os mais velhos) de estar e aprender com outras crianças, de forma livre e espontânea. A experiência, a presença, a troca e a partilha social são fundamentais para a sua adequação e conduta. Surgem crianças preocupadas com o prazer imediato, centradas em si próprias, com relações de amizade mais superficiais.

A criança precisa de brincar, de estar com o outro, de ir para a rua, de aprender a lidar com o imprevisto e de se confrontar com as vontades que não são as suas. A sua regulação emocional também parte desta experiência. Através das interações com os pares, as crianças reconhecem as regras e valores morais e consequentemente vão progredindo o seu conhecimento social. E melhor ou pior vão aprendendo a aceitar, partilhar, argumentar, negociar e expressar os seus afetos e reconhecer as suas emoções que são essenciais para estabelecer relações de amizades.

Torna-se, portanto, evidente que o contexto, o comportamento dos pais e de outras pessoas de referência – os colegas, amigos e professores – é a via de excelência para a mediatização e aprendizagem das competências sociais. A criança vai observar e reproduzir. Ela precisa de ter uma diversidade grande de oportunidades para estas experiências, para replicar, sentir e viver as consequências das suas atitudes e assim vai poder fazer escolhas e vir a usar competências sociais ajustadas.

A escola pode e deve contribuir para a socialização ao fornecer contextos e pretextos de interações informais e formais. Deveriam fazer parte do currículo programas de promoção de competências sociais, onde fossem abordadas, direta e explicitamente, estas questões, bem como o ensino dos direitos do Homem, promovendo a autoconfiança e a tolerância para com os outros. O próprio educador e professor, pela sua maneira de estar, atitudes, valores e personalidade vai também moldar o aluno.

A família é o meio privilegiado para a aquisição das competências sociais pela observação, através de situações informais. Com as situações do quotidiano e ainda com os contos e brincadeiras, é possível facilitar-se a aquisição de normas e de comportamentos sociais adequados. Com o jogo é possível trabalhar a cooperação, o lidar com a frustração, e com o perder, mas também com o ganhar, solucionar problemas e respeitar regras. A família deve ainda tentar evitar a tentação de resolver os problemas pela criança, logo em primeira instância, devendo dar-lhe oportunidades de resolver de forma autónoma os seus conflitos e os desafios pessoais, interferindo somente quando esses conflitos colocam em causa a segurança física e psicológica do próprio ou dos que o rodeiam.  

Quando estas competências não são desenvolvidas de acordo com o esperado para a idade, quando há um desajustamento social com um impacto significativo na qualidade de vida da criança ou jovem – principalmente quando falha a aceitação dos outros – é a altura de procurar ajuda.

Muitos fatores, os genéticos nomeadamente, podem colocar as crianças em risco de isolamento. Não serão apenas a constante presença de ecrãs e novas tecnologias, ou os novos padrões de ocupação de tempos livres que estarão na base desta ‘epidemia’ de desinvestimento social. Mas independentemente das causas ainda por conhecer deste ‘ensimesmamento,’ compete a todos, cuidadores e técnicos, acautelar que o ambiente em que se movem não seja mais um a contribuir para o empobrecimento desta dimensão fundamental, a do crescimento de cada um pela relação com os outros.

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