Miguel Manso

Bushcraft

Quem tem medo de sobreviver no mato?

Afastados da civilização e de faca afiada à cintura. É desta forma que abrimos o espírito à aprendizagem das artes do mato. Bushcraft, dizem eles.

Quando marcámos a data ainda não havia possibilidade de aceder às previsões meteorológicas para o fim-de-semana em que participaríamos num Curso de Bushcraft, actividade que tem vindo a crescer um pouco por todo o mundo, e também por cá, mas sobre a qual até então, admita-se, tínhamos conhecimento zero. Apenas o que nos indicava o folheto: “arte de prosperar no mato”, expressão que, obviamente, logo nos aguçou o instinto de sobrevivência.

Nada como estar bem informado — portanto, primeira medida de segurança, pesquisar logo tudo o que for possível sobre o bushcraft. Depressa percebemos que esta actividade pretende fornecer ferramentas para que se tire o maior partido possível da vida na natureza e que o facto de andar a ser muito falada nos últimos tempos se deve muito aos programas televisivos do britânico Ray Mears sobre técnicas de sobrevivência — primeiro com o selo da BBC, mais recentemente com a ITV.

Um pouco mais preparados, mas ainda com conhecimento pela rama, é com um certo arrepio que começamos a compreender melhor o espírito do desafio a que nos autopropusemos quando recebemos o mail seguinte. Assunto: “Programa de campo”. Assim, ficamos a saber que nos será dada “uma visão sobre o equipamento essencial do bushcraft” (o que inclui o uso ferramentas de corte, como faca, machado, serras ou catanas), que se aprenderá a tratar água (“adquirir, filtrar, purificar”) e a produzir fogo (a partir de “feather sticks, cedro, salgueiro, espruce, borracha”.  E mais aprendemos neste minimanual que passaremos a ser capazes de “construir um abrigo” (com direito a pernoitar no mesmo, portanto é bom que fique bem feito...) e a “preparar um animal vivo”.

Já a lista de coisas a levar não é menos reveladora: “mochila, saco cama e colchonete, kit de primeiros socorros, faca de lâmina fixa, pedra de afiar, 10m de fio de pára-quedas, machado, serra desdobrável ou de arco, isqueiro e firesteel”…

Chega por fim o dia combinado e, já se estava mesmo a ver, chove. Que melhor cenário para aprender a sobreviver que debaixo de chuva? Chove a um ritmo certinho quando, de mochila (muito) pesada às costas e várias camadas de roupa em cima, nos encontramos, no centro de Vila Nogueira de Azeitão, com o grupo de pessoas que, nas próximas 36 horas, serão os nossos melhores amigos. A despedida da civilização não poderia ser mais doce, embalada por uma das famosas tortas regionais.

Já a chegada ao local que passamos a chamar lar é mais enlameada. A parcos metros da estrada, e com a imponência da serra da Arrábida a montar guarda, chegamos ao acampamento no Parque Ambiental do Alambre: uma lona estendida a servir de resguardo a uma mesa, outra já com a missão de servir de abrigo a alguém, um círculo formado a partir de troncos com uma fogueira no meio. Survival? Sim. À nossa volta todo o verde da Arrábida que, por esta altura, nos brinda com uns doces e aguerridos medronhos. Afastada uns 20 metros do sítio onde estamos, uma estrutura a céu aberto que inclui casas de banho (com duches, embora de água fria), um tanque e lava-loiças. A sobrevivência pode ser uma arte, mas a presença desta estrutura torna-se reconfortante para quem ainda não sabe nada sobre como sobreviver longe dos apetrechos que se acumulam à nossa volta no dia-a-dia.


De faca na liga

O grupo é pequeno. E não demorará a tornar-se coeso. Além da Fugas, membros da organização — todos com um passado (e presente) de escutismo, que acabariam por criar a Escola do Mato para levar mais além as experiências dos escuteiros na natureza —, uma repetente nestas lides e ainda uma família que inclui pai, mãe e dois filhos, um de 13 e outro de nove anos. “Nós é que viemos com eles”, conta, divertida, a mãe. Foi do filho mais velho que partiu a iniciativa e foi ele que combinou tudo com a escola — “até regateei preços”. Certo é que só o rapaz de 13 anos dormiria num abrigo. Os pais, sempre animados em todas as actividades, acabariam por trocar uma cama de folhas por um colchão montado no carro. O mais novo ainda adormeceria enfiado num saco-cama, dentro de uma lona, mas seria pouco depois carregado para dentro da viatura.

À medida que os pingos de chuva vão intercalando com uns tímidos raios de sol, juntamo-nos para aprender como usar a ferramenta principal para as horas que se avizinham: uma faca. Mas esqueçam-se os Rambos e guarde-se já os facalhões de mato. O que se pretende é uma faca sólida e fácil de manusear. “As melhores nem são as mais caras”, faz questão de sublinhar Pedro Alves, nosso formador. Como pegar em segurança, que inclinação manter para conseguir um corte limpo, como transportar. Parece tudo saído do senso comum, mas nem sempre o mais comum carrega bom senso e o lema por aqui, no que toca a acidentes, é “evitá-los”. “O mais perigoso é ter uma lâmina mal afiada”. Embora as passagens de testemunho também possam dar origem a situações indesejadas. Porém, no que diz respeito às facas, a regra é de ouro: “Não se emprestam.”

Com a compreensão dos segredos da lâmina, o domínio da mesma chega pela prática. E neste curso as aulas práticas têm mesmo um sentido útil. Como neste caso: criar o espeto que nos servirá para grelhar o peixe do almoço. Primeiro não pode ser de uma madeira qualquer. Tem de ser uma madeira de difícil combustão. Depois, deve ser limpa e deixada bem fininha, de forma a não desfazer o almoço ainda antes de este chegar às brasas. Mas, antes, arranjar o peixe apenas com a faca como assistente. Cortar, limpar, descamar. E, depois, esperar que o lume cumpra a sua missão, sem nunca desviar os olhos. Não é a maneira mais rápida de saciar a fome, mas o repasto que se segue vale a pena. Além do mais, como alguém lembra, “a fome é o melhor tempero”.

O mesmo se passaria em qualquer outra refeição, com um agravamento. Se nesta primeira encontrámos a fogueira já a arder, nas seguintes teríamos de tratar dela antes de tudo o resto. Como no pequeno-almoço — leite, café e bannock, isto é, um pãozinho, abrilhantado por passas e umas gotinhas de aguardente, amassado ali mesmo e cozinhado no fogo — que seria degustado cerca de uma hora após o acordar e depois de muitos galhinhos partidos, troncos serrados e ninhos de palha soprados. Fazer fogo foi para muitos a maior provação — e frustração. Porém, com o auxílio de um firesteel (embora várias outras técnicas tenham sido trabalhadas), ninguém saiu do mato com a sensação de dever por cumprir.

Mas ao fim do dia o desafio é diferente: matar, esfolar e limpar o próprio jantar antes ainda de começar a pensar em cozinhá-lo. Condição sine qua non: não há sobras para o lixo, nem nada do animal que não seja aproveitado. Até os ossos são usados para deixar para trás como fonte de fertilizante.

Já com a noite cerrada, a fogueira que nos cozinhou o jantar funciona como um íman. À volta do único ponto de luminosidade que avistamos, o grupo troca histórias, observa as estrelas e vai deixando atrasar o momento de abandonar o calor para se recolher aos abrigos improvisados. No caso da Fugas, o abrigo — uma manga de plástico sobre uma cama de ramos de pinheiro e presa por corda e estacas — cumpriu um dos seus objectivos: não deixar entrar frio. O outro era não deixar entrar a chuva mas quis o destino que parasse de chover e tivemos direito a uma noite sequinha. Quem disse que a sorte não é essencial à arte de sobreviver?

 

Informações

A Escola do Mato, que se apresenta como a única escola de bushcraft em Portugal, organiza, em parceria com a Associação Portuguesa de Bushcraft e Técnicas de Sobrevivência e a Equinócio, diversas actividades com uma periodicidade regular. O calendário para 2013 pode ser consultado no site (www.escoladomato.com/) ou no Facebook (www.facebook.com/EscoladoMato) e inclui desde Curso Essencial de Bushcraft (o próximo dias 19 e 20 de Janeiro) até Bushcraft Intensivo (quatro dias). A participação nas actividades custa entre 61,50€ (um dia no mato) e 246€ (curso intensivo). Informações pelo número 216085810 ou pelo e-mail info@escoladomato.com

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A Fugas foi convidada pela Equinócio e pela Escola do Mato