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O gato das botas

Um conselho natalício para pais com excesso de zelo e filhos desconfiados

O Natal de 1959 foi traumático para mim. Tinha quatro anos e perdi para sempre a minha fé no Pai Natal.

Como a minha mãe era inglesa, nós só abríamos os presentes no dia de Natal. Não havia consoadas para ninguém. Sempre tive inveja das crianças portuguesas que podiam ficar acordadas até tarde na véspera de Natal e, caso pagassem o preço de assistir à Missa do Galo, podiam abrir os presentes no próprio dia 24.

Nós tínhamos de deitarmo-nos muito cedo no dia 24. Antes de irmos para a cama víamos o meu pai deixar na chaminé da cozinha uma fatia de bolo de Natal e um cálice de Vinho do Porto para o Pai Natal. Na manhã seguinte, quando íamos ver os presentes que ele tinha trazido, impressionava-nos ver o prato com migalhas e o copo vazio que ele tinha deixado.

Os presentes do Pai Natal eram baratos e alegres mas de baixa qualidade. Os presentes bons — oferecidos pela família e pelos amigos — só se abriam depois do almoço de Natal.

Outra característica irritante dos presentes do Pai Natal era que eram obviamente comprados em lojas portuguesas — inclusivamente na drogaria local de São Pedro do Estoril, onde havia tambores de cartolina, flautas de plástico e brinquedos atrozes como um pau com um senhor em cima de um monociclo na ponta, que só funcionava se nós o empurrássemos.

A melancólica origem portuguesa dos brinquedos não nos caía bem no goto. Toda a gente sabia que o Pai Natal era americano — ou, pelo menos, inglês — e eram produtos americanos e ingleses que nós naturalmente esperávamos.

No Natal de 1959 o meu pai sucumbiu ao excesso de ambição. Animado pela facilidade com que tínhamos aceite o prato com migalhas e o cálice só com um pingo como prova da existência do Pai Natal, apesar de ele se abastecer na Drogaria Machado ao fundo da rua, ele decidiu anunciar que, a partir deste Natal, também se iria deixar qualquer coisa para as pobres renas: oito cenouras.

Eu até acreditava que o Pai Natal — obeso e alcóolico como era naqueles tempos — bebia vinho e comia bolo em todas as casas que visitava. Mas as renas? Como é que aguentavam uma cenoura em cada casa do mundo onde houvesse crianças?

Decidi marcar cada cenoura com um risco de alfinete. Eu não desconfiava do Pai Natal. Só tinha quatro anos. Queria era ter a confirmação que ele existia.

Na manhã seguinte fui a correr para a cozinha e lembro-me de ter acreditado que as renas tinham comido as cenouras, até porque não costumam deixar restos. Mesmo assim, quando a cozinha ficou vazia, fui à despensa para ver se estava tudo em ordem.

Não estava. Encontrei logo as oito cenouras marcadas. Senti-me aldrabado. A primeira coisa que fiz foi ir dizer ao meu irmão e à minha irmã que o Pai Natal não existia. Desataram ambos a chorar e eu com eles.

Fui com a minha braçada de cenouras ter com os meus pais. Esperava que eles agissem como aldrabões apanhados de surpresa, com culpa e arrependimento. Mas a única coisa que fizeram foi rir-se. Nem sequer tentaram explicar que as renas não tinham tido fome ou que preferiam cubos de açúcar ou algum cereal de terra gelada servido só meio século mais tarde pelo René Redzepi.

Explicaram depois que sim, que era o meu pai que comia a fatia do bolo de Natal mas não o cálice de Vinho do Porto, porque nessa altura da noite já estava a beber whisky e Vinho do Porto em cima de whisky não calha bem. Eram estas lições que as crianças portuguesas dos anos 1950 recebiam antes de chegarem aos cinco anos.

Entrámos na década de 1960 sem Pai Natal. Éramos o equivalente infantil de godless barbarians. Só os presentes ficaram, graças a Deus. Podiam ser rascas, mas eram ideais para ocupar a manhã até a hora do almoço.

Também faziámos um presépio dominado por dois carneiros gigantes, feitos com algodão hidrófilo e palitos, com quatro vezes a altura da Virgem Maria. Pedimos para deixar sapatinhos para o Menino Jesus, a ver se chovia mais alguma coisinha, mas até a paciência dos nossos pais tinha limites.