Família
É condenável deixar um filho na berma da estrada?
Castigos exagerados, como o do menino japonês que ficou na estrada, não são educativos e podem ter consequências (como se viu).
Yamato Tanooka, de sete anos, esteve seis dias perdido numa floresta no norte da ilha Hokkaido, no Japão, depois de os pais o deixarem na berma de uma estrada sozinho, como castigo por ter atirado pedras a carros. Foi encontrado vivo e com saúde e o pai, Takayuki Tanooka pediu desculpa pelo correctivo excessivo.
Este pai procedeu mal? É condenável deixar um filho na beira da estrada, numa floresta? “Um castigo desadequado e desajustado à idade da criança não é um castigo, é um mau trato. E os maus tratos, sejam eles físicos, psicológicos ou emocionais, têm de ser banidos”, defende Manuel Coutinho, secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança (IAC). O pediatra Mário Cordeiro corrobora e acrescenta: “Fosse o que fosse que o menino estava a fazer, estes pais demonstraram falta de empatia, de sentido de justiça, de proporcionalidade e de parentalidade.”
Em situações de mau comportamento e asneiras da criança, os pais devem “contar de 50 para um e não se devem deixar incendiar. Uma das piores coisas é um adulto de 1,80 metros estar descontrolado ao pé de uma criança ou bebé de 50 centímetros. É pegar na criança, retirá-la do meio onde a situação aconteceu e ter uma conversa franca e esclarecedora sobre o sucedido”, diz o coordenador do projecto SOS Criança do IAC em conversa telefónica com o Life&Style. Depois, de acordo com a idade da criança, pode eventualmente privá-la de alguma coisa. “Mas não pode ser um castigo dilatado no tempo de modo a que a criança ao fim de uma série de dias já nem saiba porque está de castigo. Tem de ser algo ponderado e tem de predominar sempre o bom senso”, continua Manuel Coutinho, elegendo o “diálogo numa zona tranquila” como a melhor solução.
Levados ao extremo, os castigos perdem a sua componente pedagógica e poderão ter consequências no bem-estar físico, psicológico e emocional da criança. A única coisa que este menino ficou a aprender com isto foi “qual o castigo que nunca deve dar”, frisa a psicóloga de família Sofia Nunes Silva, uma vez que os pais colocaram em risco a vida do filho. “Todos os castigos exagerados, que gerem medo ou pânico, muitas vezes alimentam as próprias situações causadoras do castigo e aumentam a tendência de incorrer na mesma falta”, defende a psicóloga.
Recuperar a confiança do filho
Este pai japonês queria “assustar um pouco” a criança e regressar mais tarde para o levar para casa, mas o rapaz tentou seguir o carro e perdeu-se. Foi encontrado numa base militar, já muito desidratado. Esta terça-feira saiu do hospital sorridente. O pai garante que a criança o desculpou, dizendo-lhe que o considera “um bom pai”, e a polícia de Hokkaido não vai apresentar queixa contra os adultos, embora os tenha identificado junto de um centro de protecção de menores. Mas Sofia Nunes Silva admite a possibilidade de o rapaz ficar “com os pais na mão”.
À semelhança do que poderá acontecer numa situação contrária, em que uma criança ou jovem age mal e a sua falta é tema constante em momentos familiares, Yamato poderá trazer o assunto para a ordem do dia noutras alturas. “Estes pais têm de se comportar muito bem com esta criança e ganhar o respeito que ela lhes merecia. Têm de recuperar a confiança do filho. Muitas vezes temos os filhos perante uma falta e tendem a ter de recuperar a confiança dos pais. Aqui a situação inverteu-se”, considera a especialista.
O pediatra Mário Cordeiro relembra, porém, que “uma vítima não pode nem deve vitimizar-se e ficar ‘encolhida’, mas também não pode usar o que lhe aconteceu para fazer mal a terceiros, mesmo sendo os agressores”.
Os pais de Yamato vão, provavelmente, arrepender-se para o resto da vida. “Os pais também têm momentos de impulsividade e também falham. Isto foi uma coisa completamente extremada que eu acho que não existe numa cultura como a nossa. Mas se se passasse cá, estes pais teriam um sofrimento grande ao longo da vida”, atesta Sofia Nunes Silva.
Como castigar os filhos
Não há castigos ideais – estes devem ser adaptados às situações. “Os miúdos têm um pensamento muito concreto. A abstracção começa a partir dos 10, 12 anos. Portanto dar castigos muito ao lado, fora do contexto do motivo que levou ao castigo, não tem rentabilidade”, explica Sofia Nunes Silva, realçando que a função do castigo “não é martirizar, humilhar ou magoar”.
Ao telefone, Manuel Coutinho dá alguns exemplos de castigos desadequados: “Deixarmos um bebé a chorar horas a fio, sair de ao pé dele porque achamos que o bebé tem manhas, isto é um castigo que não se deve fazer. Pegar numa criança, quando está a chorar, abaná-la violentamente… é um castigo gravíssimo que faz com que o próprio cérebro bata no osso e provoque lesões que levam à cegueira. Aquela ideia da palmada no rabo também não é bom porque afecta também a criança do ponto de vista da sua postura e coluna vertebral. Tudo o que é violência física, psicológica ou emocional sobre a criança não pode acontecer.”
As crianças, sejam qual for a sua idade, têm formas diferentes de falhar, acrescenta Sofia Nunes Silva, e não há uma directriz para todos os pais seguirem, apesar de ser uma das questões mais colocadas em consultas. “Evitamos dar ajuda específica. O castigo tem de ser aplicado ao tipo de miúdo, ao que os pais conhecem do seu filho, à forma como sabem que vai reagir. Há miúdos que podem de facto ser mais pressionados que outros, há outros para quem a pressão de um castigo muito exagerado vai ter um efeito contrário àquilo que se pretende”, enumera, diferenciando as crianças que têm uma maior capacidade de contenção e um maior controlo e noção do que se passa à sua volta e as mais imaturas e impulsivas.
“A intensidade e a frequência dos castigos é uma coisa que tem de ser medida quase situação a situação. Um castigo exagerado pode, muitas vezes, aumentar o próprio sintoma ou o motivo pelo qual a criança cometeu a falta”, comenta.
É preciso avaliar se a asneira cometida é uma situação que ocorre de forma repetida, quais atenuantes e agravantes e “ouvir o réu”, refere Mário Cordeiro. “É preciso questionarmo-nos enquanto pais. Perceber o que temos feito e como tem sido o percurso familiar. Se estamos a fazer bem, se estamos a fazer mal. Se temos de recuar, se temos de conversar mais. Se o miúdo precisa de algum apoio técnico por parte de técnicos de saúde mental”, diz Sofia Nunes Silva e ter sempre em conta que, um castigo mal medido, pode levar a um afastamento ao invés da aproximação pretendida.
E nunca esquecer o contexto do acto. A psicóloga exemplifica: “Um miúdo que joga uma bola para um sítio que sabe que não pode jogar e partiu dois vidros. O castigo terá de ter a ver com a privação de alguma liberdade relativamente ao jogar à bola e à própria bola.”
Mário Cordeiro frisa que o castigo “não pode ser proporcional ao prejuízo, mas proporcional à vontade que a criança tinha de praticar o mal”. “Depois, a criança tem de ser sempre louvada enquanto filha, justamente no momento em que mais vê o abandono como hipótese: deve dizer-se: ‘és querido e amo-te muito’, e seguidamente ‘mas o que tu fizeste é inaceitável, por isso…’”, explica – é o comportamento que é castigado e não a pessoa. “Garante-se o amor, que não está em causa e que o castigo é, precisamente, um fruto e uma consequência desse amor.”
Em última análise, há alguns conselhos que podem ser dados aos pais: “Sejam justos, estabeleçam limites, não abdiquem da firmeza, mas não se esqueçam do amor, saibam perdoar e pedir desculpa, eduquem os filhos para a empatia, para sentir o que os outros sentem, para a responsabilização, a verdade e a humildade”, enumera o pediatra. Os pais não devem “ter medo” de ser pais, mas não devem ver as crianças como inimigas “mesmo quando nos tiram noites de sono ou nos estragam objectos, momentos e nos tornam a vida mais difícil”.