Livro
A morte, a sexualidade e a ditadura contadas aos jovens por Clovis Levi
No Brasil, falam dele como “autor de temas polémicos para a infância e juventude”. E a verdade é que isso o distingue de outros. O escritor está em Portugal para o 2.º Encontro de Literatura Infantil da Lusofonia, na Fundação O Século
Clovis Levi tem dois livros editados em Portugal. Um sobre a bissexualidade na adolescência e outro sobre a morte, em qualquer idade. O primeiro, O Beco do Pânico (Calendário, 2009), já salvou a vida a um adolescente. O segundo, A Cadeira Que Queria Ser Sofá (Lápis de Memórias, 2012), deu a Ana Biscaia o Prémio Nacional de Ilustração. Em preparação com a mesma ilustradora está O Retrato (o que não se vê), sobre o que se sonha em criança e o que facto acontece dez anos depois.
“Eu gosto de escrever sobre temáticas que me inquietam. Confesso que penso mais em mim do que na faixa etária para a qual estou escrevendo. Assim, o que sai é que vai determinar a idade do leitor”, explica ao PÚBLICO o escritor e professor de Interpretação Teatral na Faculdade CAL de Artes Cênicas, no Rio de Janeiro. “Mas, no Brasil, já me andaram chamando o autor daqueles temas polémicos para a infância e juventude”, diz, em Lisboa, dias antes de participar no 2.º Encontro de Literatura Infanto-Juvenil da Lusofonia, que irá decorrer na Fundação O Século (São Pedro do Estoril), de 22 a 27 de Fevereiro.
Uma das conferências para que foi convidado trata justamente das “Novas realidades, novas famílias, novas temáticas”, onde estará na companhia de Carmelinda Gonçalves (Cabo Verde) e Sílvia Alves (Portugal), sendo o debate conduzido por Dora Batalim, coordenadora da Pós-Graduação em Livro Infantil da Universidade Católica Portuguesa (sexta-feira, 26, 14h30).
A conversa do autor com o PÚBLICO aconteceu no dia em que a adopção por casais gay foi aprovada na Assembleia da República. “O Parlamento acabou de reprovar o veto de Cavaco”, resumiu, satisfeito.
“Temos de ter inteligência para saber colocar as questões sobre estas novas formações familiares, de modo a que não sejam rejeitadas logo ao princípio pelos mais conservadores”, avisa. E descreve “todo o cuidado” que teve na criação de O Beco do Pânico, até porque queria divulgá-lo nas escolas.
Conta como os professores portugueses começaram por aceitar com entusiasmo, mas depois “ficaram com medo, não tinham coragem de tentar a leitura do livro dentro da estrutura mais formal da escola”, a Educação Sexual. “Mas depois que integrámos o Plano Nacional de Leitura, essa chancela me permitiu viajar por muitas escolas no Norte e Centro de Portugal.”
Nessa altura, Clovis Levi dava aulas de Interpretação, Encenação e Guionismo, na Escola Superior de Educação de Coimbra, e era também director do Curso de Teatro (2001-2012). Então, desafiou alguns alunos para irem com ele às escolas (de ensino secundário) dramatizar alguns trechos do livro. “Isso foi muito bom. Movimentou muitas pessoas.”
Desistir de morrer
Foi numa dessas “digressões” que um aluno “foi salvo pelo Beco do Pânico”, soube o autor mais tarde, através de José Fanha, com quem a professora contactou depois. Clovis conta, como se fosse a docente: “Eu tinha um aluno que estava vivendo uma crise horrorosa porque estava se descobrindo homossexual e não sabia o que fazer da vida. Esse menino me disse depois que foi salvo por O Beco do Pânico, porque estava pensando em se matar.”
Agora, na sua própria voz: “Ele leu o livro e desistiu de morrer. Assumiu que é gay e está vivendo a vida dele, com as dificuldades que isso implica, mas não mais pensando em morte.” E conclui, entre o satisfeito e o comovido: “Essas coisas são altamente mobilizadoras para eu querer continuar este caminho. O da verdade.”
O livro foi recusado por muitas editoras em Portugal, mas também no Brasil, até que a Globo o aceitou. “Não se pode dizer que sou um autor infantil ou infanto-juvenil que trabalha temas-padrão”, afirma, lembrando que foi jornalista durante muitos anos e por isso quer falar de “coisas da nossa época, da actualidade, tenho de estar ‘linkado’ aos acontecimentos de hoje”. Mas “apresentando sempre uma visão crítica do mundo em que a gente vive, através da maneira como encaro o que vejo no dia-a-dia, o que leio nos jornais, vejo nas ruas, na televisão”. Em síntese: “Tudo isto se liga à minha formação pessoal, às minhas maluquices, idiossincrasias, às minhas neuroses, angústias e por aí vai…”
Do Brasil trouxe dois livros para divulgar no encontro (da editora Viajante do Tempo), O Pinguim Que Morria de Frio, cinco histórias infantis curtas, e Proibido Pensar, para o público juvenil: “É um livro que discute os governos totalitários, a partir de uma percepção que eu tive de que no Brasil os adolescentes não têm a menor ideia do que aconteceu na ditadura militar.” Do mesmo se apercebeu aqui em Portugal, “lidei muito com a juventude e percebi que muito pouca coisa eles sabem sobre a ditadura de Salazar”.
Proibido Pensar foi uma solicitação do editor, “já que estamos comemorando os 50 anos da ditadura militar”, diz, mas logo corrige, bem-humorado: “Comemorando, não.” E soletra: “La-men-tan-do.”
A necessidade de fantasiar
Clovis Levis (que veio dois meses antes do congresso, com a sua mulher, contadora de histórias, Pamela Croitorou, porque ambos adoram Portugal) acredita que “a arte é um caminho da salvação das pessoas, permite trabalhar com elementos que não podem ser ignorados, como a fantasia”.
O actor, escritor, professor e director de actores não tem dúvidas: “A gente precisa de fantasiar, sonhar, entrar na ficção, entrar num mundo maravilhoso. Um mundo que seja totalmente poético, que mistura poesia, fantasia, o trágico, o dramático, isso mobiliza as almas. Não estou falando só de literatura, estou falando de teatro, cinema, artes plásticas, música. A arte permite que a pessoa tenha uma renovação interior. E abre muitas portas, muitas inquietações novas, muitas vontades de investigar universos que você nunca pensou.”
Acredita também que a arte é transformação: “Você lê um livro e vê que nunca tinha pensado naquilo. A partir daí, pode ir muito, muito longe. Mudando o seu interior, mas também aquilo que esta próximo de você: o seu marido, a sua filha, a sua mulher. Você vai interagindo.”
Sobra a leitura em concreto, diz: “Ler, para qualquer criança, além de a permitir entrar nesse universo da fantasia, do onírico, do imaginário, também lhe dá ferramentas para sobreviver melhor nesse mundo que é cada vez mais louco que a gente está tendo.”
O autor vai participar na primeira mesa do encontro, “Os escritores, a promoção da leitura e as bibliotecas escolares”, em que participam também António Mota, Lúcia Barros, Maria João Lopo de Carvalho, com moderação de José António Gomes (dia 25, 11h).