O gato das botas
Algumas verdades fofas e nuas sobre o paraíso que de modo algum precisavam de ser ditas
O paraíso é a repetição esperada do desejo e inesperada do prazer. O paraíso nunca pode ser imaginado. Se é preciso imaginar é porque não se está lá.
O paraíso pode ser sonhado mas nunca satisfaz porque, para ser um paraíso, é preciso consciência que se está lá, acordado, cheio de toda a sorte do mundo.
O paraíso religioso é permanente. Se fosse fugaz não seria preciso a fé. É como a alma imortal e o tormento eterno: sem mudança, sem possibilidade de acabar mal, sem interrupções indesejadas, o paraíso transforma-se num inferno de monotonia.
O paraíso é, então, uma extrema felicidade passageira que promete poder voltar, talvez. Se nunca mais pudesse voltar, fosse de que forma fosse, seria uma tragédia.
O paraíso parece enorme a quem lá está, momentaneamente, mas é pequeno visto de fora, por quem não está.
O paraíso tem de ser nesta terra, enquanto estamos vivos. Por muita fé que se tenha é difícil conceber que há prazeres mais deliciosos dos que o da vida que só estão reservados para os mortos.
As pessoas que se castigam e sacrificam durante uma mera vida inteira, na esperança de irem para o paraíso eternamente, são gulosas. Faria sentido sacrificar uma vida se tivéssemos a certeza que receberíamos uma outra vida cheia de coisas boas, sem desilusões ou tristezas de qualquer espécie? Também não.
A não ser que se pertença à minoria que acha paradisíaco sacrificar-se, todos temos o direito de desconfiar dos sacrifícios. Quando se sacrifica uma galinha, quem é que se lixa e quem é que fica a ganhar?
Quem se lixa é a galinha. Quem fica a ganhar é quem a mata (que ganha a esperança de ser favorecido) e, finalmente, quem a come.
Quando outras pessoas nos dizem que se sacrificaram para nós termos uma vida melhor do que aquela que tiveram, devemos simplesmente agradecer, dizer “obrigado” e deixar esclarecido que já não se quer falar — ou ouvir falar — mais nisso.
Toda a noção de sofrer aqui e agora para depois gozar ali e depois deve ser encarada com a máxima suspeição. “Porta-te bem para ires para o céu” é menos convincente ainda do que “se te portares mal vais parar ao inferno”.
O paraíso original era o de Adão e Eva. Só havia uma árvore em que não podiam tocar: a árvore da sabedoria. Deus não podia ter sido menos exigente: desde que vivam na ignorância, sem querer saber de nada senão da vossa felicidade e do vosso prazer, garanto-vos uma vida isenta de todos os problemas excepto um: a curiosidade de provar o fruto proibido e o que é que aconteceria se o provassem.
Repare-se que a árvore não era da inteligência ou da sensualidade.
Adão e Eva eram, sem dúvida, inteligentes e sensuais. Amavam-se; davam-se bem; não tinham de trabalhar; era sempre Primavera e Verão e havia muito para comer e fazer: conversar, amar, passear, dormir à vontade, gozar uma vida sem borbulhas nem doenças nem outras pessoas para chateá-los.
Alguns religiosos puritanos e misóginos tentaram fazer de conta que a árvore era a do sexo, que Eva tentou Adão e que o pecado original foi terem-se enrolado à primeira oportunidade. Como estavam sempre nus nem era possível que quisessem saltar para a cueca um do outro.
Apesar de todas as deturpações, a ideia original do paraíso continua a ser boa e consegue-se recriá-la aqui na Terra como suficiente exactidão. Até por ter a vantagem de se ter comido o fruto da árvore da sabedoria e, por conseguinte, já se saberem umas coisitas.
O problema é que não sai barato. Ter Deus como agente de viagens era uma vantagem colossal. Mas, com um mínimo de planeamento, é possível fugir com a pessoa com quem mais quer estar no mundo (se ela também quiser ir) para um lugar onde não é preciso fazer absolutamente nada para se comer, beber, dormir e tudo o mais que costuma dar trabalho.
Até em casa, desligando todos os telemóveis e convencendo o resto do mundo que se está a passar um mês na Tasmânia, se chega ao paraíso num instantinho ou dois.