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Casamento

Identidade, submissão ou amor? O que significa adoptar o apelido do marido

Nada obriga uma mulher a adoptar o apelido do marido no casamento. As que o usam são mais carinhosas e menos inteligentes?

Nada obriga uma mulher a adoptar o apelido do marido no casamento. Mas de forma voluntária ou em nome da tradição, muitas são as que alteram a sua identificação, apesar de essa tendência ter vindo a decrescer na última década. Manter o nome de solteira pode ser entendido como uma recusa à submissão masculina ou à necessidade de se manter um nome que significa experiência profissional ou peso na sociedade.

Dados reunidos pelo Ministério da Justiça, nos últimos anos, indicam que mais de 60% das mulheres mantêm o nome de solteira após casarem. Numa rápida pesquisa em fóruns online, a questão de mudar ou não o nome após a união surge várias vezes. Algumas mulheres afirmam que recusaram adoptar o apelido do marido porque este se recusou a fazer o mesmo; outras que o seu nome ficaria demasiado longo; e grande parte diz que quer manter a sua identidade e que a situação evita burocracias na eventualidade de um divórcio. Por outro lado, quem decidiu ter um novo sobrenome fala em amor, em reforço da união mas também em tradição.

Filomena dos Santos, professora na Universidade da Beira Interior e investigadora no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia no Instituto Universitário de Lisboa, observa que o “facto de as mulheres continuarem a usar o sobrenome dos maridos após o casamento, e apesar deles também o poderem fazer mas serem elas a fazê-lo mais frequentemente, terá a ver com a tradição, e apesar do reforço da autonomia feminina e da crescente igualdade de género, o casamento continua associado à dominação simbólica do masculino, e a questão do sobrenome é disso um exemplo”.

Mulheres mais carinhosas e menos inteligentes
Recentemente, esta questão ganhou um novo relevo com o casamento do actor norte-americana George Clooney e a advogada especializada em direitos humanos Amal Alamuddin. Para a surpresa de muitos, Amal decidiu adoptar o nome Clooney. O que levou uma mulher com um nome firmado na advocacia internacional e com um currículo impressionante a tornar-se sra. Clooney?

Louise Scodie, jornalista no London Live, escreveu um artigo no jornal britânico The Independent em Outubro passado no qual indicava que Amal tinha feito essa opção porque simplesmente “quer compartilhar um nome com o marido, isso não significa que está a desistir da sua identidade”. “Na verdade, o seu trabalho continua a ser a sua identidade mais forte. Ela tem uma carreira substancial e de alto nível que é a inveja de muitos, algo que ela criou para si mesma. Isso não vai mudar, mesmo que o seu nome tenha mudado”.

Um estudo de 2010, do Tilburg Institute for Behavioral Economics Research, na Holanda, concluiu após um inquérito realizado junto de estudantes universitários que as mulheres que adoptam o nome do marido são “mais carinhosas, mais dependentes, menos inteligentes, mais emotivas, menos competentes e menos ambiciosas”. Pelo contrário, os inquiridos consideraram “menos carinhosa, mais independente, ambiciosa, inteligente e competente” as que mantiveram o nome de solteira.

As conclusões podem ser polémicas, mas na generalidade as primeiras críticas que surgem quando uma mulher quer passar a ser identificada com o nome do marido é que esta é submissa e pouco independente e que está a abdicar da sua identidade.

Mulher abdica da sua “marca”
Ana Coucello, da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM), dá um exemplo pessoal ao Life&Style para explicar que ao abdicar do nome de solteira, a mulher abdica da sua “marca”. “Recentemente tentei entrar em contacto com as minhas companheiras dos tempos de colégio. Procurá-las tem sido um exercício frustrante e moroso! Apercebi-me que ao longo dos anos algumas vezes os seus nomes foram-me referidos por terceiras pessoas ou apareceram em documentos que li e eu não as reconheci simplesmente porque se faziam identificar por uma ‘marca’ diferente da ‘marca’ original pela qual eu as conhecia”.

A antiga presidente da PpDM e da Association des Femmes de l’Europe Méridionale considera que se trata de uma “prática que se traduz na renúncia pelas mulheres ao factor distintivo que sinaliza a sua singularidade civil e social, o que as torna ‘irreconhecíveis’, contribui para a sua invisibilidade no espaço público e dificulta o estabelecimento de redes entre elas pela descontinuidade abrupta que introduz, já que a sua ‘marca de origem’ muda subitamente pela simples assinatura do assento de casamento”.

Citando o artigo 26.º da Constituição, que reconhece o direito à identidade pessoal, Ana Coucello realça a “adopção pelas mulheres do sobrenome do marido é pois e tão só uma prática continuada que a lei não obriga nem proíbe”. Nesse sentido, não considera esta “uma boa prática” e que deveria ser “uma tradição a contrariar através de informação e sensibilização já que constitui um atropelo à identidade pessoal das mulheres e fragiliza o exercício do seu direito ao bom nome, reputação e à imagem”.

Pressão social e cultural
A direcção da Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens (REDE) também refere o que diz a lei, mas realça que as opções que as mulheres tomam na altura de decidir a manutenção ou não do seu nome de nascença “são muitas vezes influenciadas pela pressão do contexto social e cultural”. “Há muitas mulheres que adoptam, em papel, o sobrenome do marido mas depois nunca o usam, ou seja, não se identificam com o novo sobrenome. Há outras, entretanto, que são felizes em usar o seu novo nome”, reforçou a REDE.

Questionámos a PpDM se as mulheres que adoptam o apelido do companheiro não o estarão a fazer apenas por amor. “Porventura muitas mulheres pensarão que o fazem por amor mas o que é inerente à ‘tradição’ é mesmo a submissão à parte masculina do casal. Os nomes indicam/carregam uma pertença. O que subjaz a esta prática é portanto uma pertença: ‘eu pertenço àquele homem e à sua família’”, sustentou Ana Coucello.

Quanto à adopção recíproca pelos cônjuges dos sobrenomes de família de ambos, a PpDM afirmou que se pode tratar de “um impulso romântico de fusão mas também pode ser um compromisso para uma relação conjugal que se paute de facto pela igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, tal como a lei determina”. “No caso de um relacionamento igualitário, o casal decide com base noutras prioridades, sem ser a imposição machista”, acrescentou, por sua vez, a REDE.

O que foi dizendo a lei
Até ao século XIX não havia qualquer indicação quanto à obrigatoriedade ou direito de a mulher usar o apelido do marido. Terá sido após essa altura que as mulheres o começaram a fazer num acto explicado essencialmente com o reafirmar do homem como chefe de família. Só em 1910, na lei republicana, surge a possibilidade de a mulher optar por ter o sobrenome do marido.

Num artigo publicado em 2008, o antropólogo da Universidade Nova de Lisboa, Armindo dos Santos, explica que até 1976, o artigo 1675.º do Código Civil autorizava “expressamente” essa possibilidade: “a mulher tem o direito de utilizar os nomes do marido até que o divórcio tenha sido pronunciado ou, em caso de viuvez, até segundas núpcias”. Após as alterações à lei há 38 anos, foi incluído o artigo 1677.º - Direito ao nome, que estabelecia que também o homem poderia acrescentar um ou dois dos apelidos da mulher aos seus.

A lei estabelece actualmente que os noivos definam se “pretendem ou não adoptar o apelido ou apelidos do futuro cônjuge, num máximo de dois”. “Por defeito, prevalecem os apelidos de cada um, pelo que a alteração tem que ser expressamente requisitada”, explica o site do Instituto de Registos e Notariado.