Solidariedade
Doar cabelo, ajudar a auto-estima
Carolina tem 12 anos. A mãe mostrou-lhe o vídeo de uma menina de 5 anos que tinha cortado o seu longo cabelo para doar a crianças com cancro. Carolina e a mãe ficaram rendidas à história da criança e também à de uma amiga, que tinha feito o mesmo. Dias depois, mãe e filha estavam num cabeleireiro. Duas tranças foram preparadas tendo como destino o IPO de Lisboa.
Os tratamentos contra o cancro são violentos. Os efeitos secundários são temidos, entre eles a queda total ou parcial do cabelo. Os doentes oncológicos optam na maioria dos casos por cortar o cabelo que ainda têm antes de este começar a cair ou quando as primeiras mechas se soltam. Há quem assuma a cabeça nua. Outros recorrem a chapéus, lenços mas também a perucas ou cabeleiras.
João Carlos, 37 anos, sabe desta realidade e quis ajudar. Doou cabelo entre 2009 e 2011 para que fossem criadas cabeleiras de cabelo natural para doentes com cancro. Na altura vivia em Nova Iorque e por três vezes trocou o cabelo comprido por um corte curto. Uma das vezes foi o próprio que enviou o cabelo pelo correio para a Locks of Love, uma instituição não lucrativa que reúne doações para próteses destinadas a crianças nos Estados Unidos e no Canadá.
Actualmente a viver em Lisboa, este fotógrafo, realizador e professor conta ao PÚBLICO que a ideia de se tornar dador formou-se quando leu um “panfleto da Locks of Love e viu um documentário sobre o negócio do cabelo na Índia”. “Como tenho muito cabelo e forte, que não estava estragado ou pintado, pensei que podia ser uma forma simples de ajudar uma criança com cancro”. O sobrinho de João Carlos, na altura com cinco anos, “queria ser igual ao tio”. “Deixou crescer o cabelo para poder doar também”.
Carolina e a mãe Isabel, uma engenheira informática de 41 anos, que perdeu a mãe para um cancro, seguiram os passos de Maria João Nogueira. “A doação de cabelo nunca tinha sido uma ideia que tivesse surgido, basicamente pelo facto de desconhecer que podia ser feito”, conta Isabel. Depois de ver um vídeo de uma criança que doou o cabelo e relatava a sua experiência e de ler um post da amiga no Facebook, a “ideia começou a ganhar força”.
Uma conversa com Maria João ajudou a responder a várias dúvidas e num fim-de-semana de Março mãe e filha estavam no mesmo cabeleireiro que cortou o cabelo à amiga. “No dia da doação íamos ambas nervosas e ao mesmo tempo emocionadas. Nunca tínhamos feito um corte tão grande”, confessa ao PÚBLICO. Documentaram a experiência. “Tirámos fotografia das tranças que íamos doar. E no final a Carolina escreveu uma carta onde explicava o motivo da nossa doação. Foi esta a carta que acompanhou as duas tranças que foram entregues no IPO [de Lisboa]”.
Maria João Nogueira, de 45 anos, gestora de produto, já tinha dado sangue e está inscrita como dadora de medula óssea. No dia 8 de Março estava no cabeleireiro e em minutos tomou uma decisão que mais uma vez lhe pareceu óbvia. “Ia cortar um bocado, e a minha cabeleireira de há anos perguntou-me se eu ia cortar muito ou pouco. Eu disse que ia dar um corte valente e ela perguntou-me se eu estaria interessada em doar, explicando-me quais os requisitos. E eu respondi: ‘Corte tudo aquilo de que precisar’”.
Também foi uma amiga de Lúcia Fernandes, uma educadora de infância de 27 anos “à procura de emprego”, que lhe falou sobre a doação de cabelo. Em Novembro passado optou por um corte mais curto e decidiu entregar o seu cabelo no núcleo regional do Sul da Liga Portuguesa Contra o Cancro, que têm as instalações no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa. “Eu que já não cortava o cabelo há três anos pensei que era uma boa forma de mudar e ao mesmo tempo poder ajudar. É como dar sangue, não custa nada e pode fazer a diferença na vida de alguém”.
Para doar cabelo é necessário que este tenha um comprimento mínimo de 30 centímetros e esteja lavado e completamente seco. O cabelo deve ser preso com um elástico num rabo-de-cavalo e depois feita uma trança no final, à qual deve ser colocado outro elástico. O corte é feito acima do primeiro elástico.
Todas as semanas chegam ao núcleo regional do sul da Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC) várias doações de cabelo. As doações são entregues em mãos, chegam através de voluntários ou são enviadas pelo correio. “Notamos que a consciência social sobre a problemática está a crescer e são cada vez mais os cidadãos que querem contribuir e doar aquilo que lhes é mais querido”, observa a responsável Helena Grilo.
Do lado de quem recebe a dádiva, há “uma luta diária contra a doença, mas também de uma luta para manter a auto-estima”, segundo a responsável da LPCC. “Muitas vezes, os doentes reagem pior às transformações que o corpo sofre do que aos tratamentos. Rapar o cabelo ou vê-lo cair pouco a pouco é como perder um pouco de nós, é como assumir perante os outros que estamos doentes”, resume. As perucas “ajudam os doentes a manter o ânimo” e a encarar o dia-a-dia com “mais naturalidade”.
Ajudas pedidas nos IPO
O núcleo regional do sul da LPCC entrega as tranças de cabelo a empresas parceiras nesta causa e em troca recebe algumas perucas de cabelo sintético para doentes oncológicos. Este é o procedimento actual, mas a Liga pretende arranjar parceiros para criar as cabeleiras com cabelo natural. “A nossa ambição mantém-se: oferecer próteses de cabelo verdadeiro aos doentes oncológicos que não têm possibilidades financeiras”, explica Helena Grilo. Mas o processo “não tem sido fácil”, devido ao trabalho que implica e ao valor. “Uma peruca de cabelo natural é feita cabelo a cabelo e o seu valor pode chegar aos mil euros, uma despesa que não pode ser suportada por nós de modo a podermos oferecer aos doentes oncológicos”. Enquanto não encontra um parceiro para o fabrico de perucas com cabelo natural, a Liga está a guardar as tranças doadas.
Segundo os números mais recentes, em 2013, o núcleo regional do sul da LPCC doou cerca de 130 próteses de cabelo sintético. “Mesmo sendo uma peruca sintética, os doentes sentem-se melhores e mais confortáveis com a sua imagem”, refere Helena Grilo.
No IPO do Porto, o processo decorre de outra forma. A instituição não recebe doações de cabelo mas disponibiliza gratuitamente a prótese capilar sintética aos doentes através de um acordo celebrado por concurso público com um profissional qualificado, como explica o médico e coordenador da Clínica de Mama do IPO-Porto, Joaquim Abreu de Sousa.
“O que o instituto faz é emitir um documento que o doente apresenta nessa empresa a fim de receber a prótese capilar de que necessita, dentro das opções que temos contratualizadas”, indica.
Os doentes oncológicos podem beneficiar do apoio da Segurança Social para ter comparticipação nas despesas com próteses capilares. Para isso devem pedir uma prescrição ao seu médico assistente. Este documento é utilizado junto ao cabeleireiro ou empresa que tenham acordos com a Segurança Social ou subsistemas de saúde para fornecerem uma peruca.
O PÚBLICO falou com alguns espaços que aceitam prescrição médica para próteses capilares e que recebem pedidos de ajuda de doentes oncológicos. A Casa Minabel, em Lisboa, tem acordos com algumas instituições hospitalares e importa as suas perucas de França. Em Portugal não existe um fabricante de cabeleiras de cabelo natural e, tanto estas como as sintéticas, vêm principalmente de países europeus como Itália, Alemanha ou Espanha.
Na Minabel já entraram muitas pessoas a pedir aconselhamento de imagem após perderem o cabelo devido a doença oncológica, mas para a empresa as doações de cabelo não fazem muito sentido. As exigências para recolha, condições de armazenamento e tratamento de cabelo natural limitam a criação de cabeleiras e muitos fabricantes de cabelo recusam-se mesmo a receber este tipo de cabelo.
António Silva, da Tecnicabelo, a funcionar em Coimbra, avança o mesmo argumento para não aceitar doações capilares. “A Tecnicabelo não aceita porque não existem fabricantes em Portugal e porque as empresas estrangeiras com que trabalha também não aceitam”, diz.
O valor de uma peruca feita de cabelo natural também é um factor dissuasivo. Pode atingir as várias centenas de euros e nem sempre é possível garantir que apenas o cabelo verdadeiro doado vá ser utilizado no fabrico de uma cabeleira. Por vezes, é necessário acrescentar cabelo idêntico e adaptar a cor ao tom natural, o que encarece o produto final.
O cabeleireiro Inês Pereira tem um acordo com o IPO do Porto. O espaço vende e aplica as próteses, naturais ou sintéticas, criadas para uma marca francesa. Neste local, o cabelo natural é aceite para que se construa uma cabeleira para um doente oncológico, mas este é enviado para o fornecedor francês que depois o entrega a uma fábrica para fazer a peruca.
A utilização ou não do cabelo doado não parece incomodar quem já deu parte de si para ajudar os outros. “Tudo o que puder dar, que contribua para o bem-estar dos outros, dou. Faz parte da minha natureza”, assegura Maria João Nogueira, que pretende voltar a fazer uma doação assim que o seu cabelo volte a crescer. Lúcia Fernandes não tem dúvidas que o fará. Isabel e a filha Carolina também estão dispostas a repetir a experiência. “Coloquei essa questão à minha filha, e a resposta não podia ter-me deixado mais orgulhosa: ‘Claro que sim, mãe!’.