No início estão os petiscos. Mas nem só deles se faz o mais recente
livro do especialista em história da gastronomia, Virgílio Gomes.
Há muitas revelações sobre outras “grandes maravilhas da cozinha
nacional” por entre histórias de receitas nascidas em palácios, em
conventos e em casas populares.
Um dia, há já duas décadas, Virgílio Gomes, investigador e especialista na história da gastronomia, foi a um jantar medieval organizado no Castelo de São Jorge, em Lisboa, e espantou-se ao ver que se serviam “batatas fritas à inglesa”. Mais recentemente, numa outra festa medieval, indignou-se quando lhe apresentaram um caldo verde. Para se fazer reconstituições históricas que envolvam gastronomia é preciso conhecer-se a história, diz. É preciso, neste caso, “ter a consciência de que o caldo verde não podia ter começado antes do século XIX”, porque só nessa altura se generalizou em Portugal o uso da batata.
O que Virgílio Gomes faz no livro que acaba de lançar, Tratado do Petisco e das grandes maravilhas da cozinha nacional (ed. Marcador), é precisamente recuperar estas histórias, ir à procura das raízes de cada prato, vasculhar em antigos livros de receitas, compará-las, estabelecer fronteiras entre o que é a evolução de um prato e o que é a sua transformação em algo completamente diferente. É dar-nos bases para conhecermos a nossa gastronomia.
“Os responsáveis pelo nosso ensino ainda não se consciencializaram que a comida é um elemento cultural importante e que temos que estudar com seriedade a retaguarda cultural dos nossos pratos”, diz. “Estou sempre a batalhar nestas questões.” Maria de Lourdes Modesto, num dos dois prefácios ao livro (o outro é de Simonetta Luz Afonso), confirma: “Conheci Virgílio Gomes há já muitos anos — bastantes. […] Pela primeira vez, alguém conversou comigo sem me pedir receitas e sem me fazer observações ao que eu então fazia. E, pela primeira vez também, não se falou em culinária tradicional, mas em património cultural. Levou anos até que esta sua opinião fosse validada.”
E, por falar em cultura, vale a pena entrar num dos capítulos do Tratado para perceber como é que Virgílio Gomes trabalha estes temas — e, já agora, isso dá-nos oportunidade de perceber melhor a questão da batata acima referida. “Mais uma vez respondo categoricamente que o pastel de bacalhau não é uma consequência directa das Descobertas. O pastel só surgiu quando foi introduzida a batata em Portugal, e é esta que o fará entrar em decadência. A primeira notícia acerca da batata no nosso país está datada de 1760, e só em 1798 é que a rainha D. Maria I publica um incentivo à plantação deste tubérculo nos Açores. Precisamente nesse ano dá-se a notícia relativa à plantação de batata no continente, quando a Academia das Ciências entrega a medalha de ouro a D. Teresa de Sousa Maciel pela sua produção de batata.”
À procura da bruxa
A casa de Virgílio Gomes está transformada numa biblioteca de gastronomia. As pilhas de livros crescem por todo o lado — dos mais antigos, onde o investigador encontra aquelas que são as primeiras referências escritas a determinada receita, aos mais recentes, publicados em Portugal e no estrangeiro, que continua sempre a comprar. A estas leituras junta-se uma pesquisa nos locais. Mais uma vez, Maria de Lourdes Modesto, no prefácio, confirma: “Havendo pouca documentação, é necessário ir para o terreno à procura das estórias regionais. Ora quando Virgílio Gomes nos escreve sobre uma tradição local é sinal de que ele esteve lá.”
Virgílio conta as suas aventuras por Portugal (e também pelo Brasil, onde passa algumas temporadas e onde tem encontrado pratos e sobretudo doces levados de Portugal e que continuam a ser feitos por mestras doceiras em sítios que nem imaginamos). O resultado destas investigações é publicado no seu site (
www.virgiliogomes.com). Muitas vezes descobre pistas preciosas, mas há também viagens que se revelam uma desilusão. “Às vezes as experiências são frustrantes”, conta. “Fui a Valpaços, passei lá dois dias, e voltei frustrado porque não encontrei nenhum documento, nenhuma prova, a não ser por transmissão oral, sobre a bruxa de Valpaços, que tem duas receitas conhecidas. O meu objectivo não é publicar essas receitas, é perceber como é que se chegou a elas e por que é que adquiriram fama. Por serem da bruxa? Ou porque ela era uma grande cozinheira?”.
Há sempre alguém que sabe alguma coisa, que ouviu dizer, mas isso não chega. “Não há papéis. As primeiras receitas que temos escritas em Portugal são do século XVI, e são de uma cozinha palaciana, que não é o que nos interessa para perceber as tradições.” Tem um especial prazer em escrever sobre doçaria, “talvez porque a linguagem é mais poética”. E andou, por exemplo, à procura das origens do pastel de nata. “Andei a ver em todos os livros como é que aparecia a receita do que parecia ser o pastel de nata, e por isso chamo aos pastéis de leite da infanta Dona Maria o avô do pastel de nata, o creme é igual, a forma exterior não é conhecida, só a massa é diferente.”
Assim se prova que “a cozinha é um processo evolutivo”. Veja-se outro exemplo, o do cozido à portuguesa: “A primeira receita publicada é de 1680 em Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, chama-se Olla Podrida, e ainda era ‘à espanhola’: a forma de cozer e juntar os produtos não era a mesma, mas continua a ser cozido. Depois, com o tempo, os enchidos foram mudando, foram-se eliminando gorduras, alteraram-se os tempos de tempero, começaram-se a usar melhores vinhos para temperar os enchidos, tudo isto representa uma evolução.” No capítulo que dedica a este prato, Virgílio é muito claro ao reconhecer que “o cozido foi herdado a partir de Castela”, e daí evoluiu, existindo hoje muitos cozidos diferentes nas várias regiões de Portugal.
Mas, atenção, evolução não significa ruptura. “Pode-se evoluir mas não criar rupturas como foi feito, por exemplo, com a alheira de bacalhau. No imaginário da alheira está a carne de porco, a matança do porco, se lhe invertemos o sentido estamos a fazer uma ruptura.”
Como já se percebeu pelos exemplos citados, o Tratado do Petisco está longe de ser um livro apenas sobre petiscos. “Digo logo no início que Portugal é um país petisqueiro e que tanto conseguimos transformar um petisco num prato completo como reduzir um prato completo a um petisco.”
E, viajando por estes conceitos que se cruzam, o Tratado percorre as outras “grandes maravilhas da cozinha nacional”: sopas e caldos; açordas, migas e ovos; peixes, mariscos e caldeiradas; bacalhau, polvo e moluscos; arroz e feijoadas; carnes; e doçaria. De fora ficaram três coisas importantes — os cogumelos, os queijos e os enchidos — mas é propositado, diz Virgílio, que promete deixar estes temas para futuros livros (em preparação está já um sobre a matança do porco).
Só conhecendo a história da nossa cozinha e percebendo que "o entendimento da mentalidade da época é fundamental para se compreender a comida” é que se pode ter bases para a tão falada divulgação da cozinha portuguesa pelo mundo. “A linguagem da pizza ajustou-se à facilidade de comunicação e aos tempos modernos. E não há nada mais simples que uma pizza. Porque é que não pegam no nosso pão, que é tão bom? Se calhar devíamos ter pensado há mais tempo nas bifanas, nos pregos, nas empadas, que podem ser feitas com várias massas, diferentes recheios, e é um produto que ainda não aprendemos a trabalhar para a grande dimensão do consumo.”
É preciso “fazer o marketing da marca portuguesa no mundo”. Virgílio acredita, por exemplo, que “o pastel de bacalhau é facilmente exportável”, mas é preciso ver como fizeram os outros países. “A paella só se torna conhecida no mundo depois da guerra civil de Espanha porque era preciso uma coisa colorida e alegre. Em Portugal, os responsáveis pelo turismo nunca tiveram uma determinação a esse nível.”
Igualmente fundamental é “olhar para a restauração que temos e ajudá- la a crescer”. Para explicar o que quer dizer, conta uma história: “Recentemente estive num restaurante e pedi uma cataplana. Quando a vi, perguntei ‘Fizeram a cataplana na cataplana?’. Provei e vi logo que não podiam ter feito. O empregado disse ‘Ah, já vi que o senhor percebe, nós nunca fazemos a cataplana na cataplana, é só para decorar’. Isto não pode ser. A cataplana não é um objecto de decoração, é para um tipo de cozedura extraordinário, e tem que ser bem feito.”
É por isto que temos que, para além de dominar as técnicas, conhecer a história da nossa cozinha, perceber a mentalidade da época em que nasceu cada prato, investigar, recolher histórias, comparar, e compreender o que está na origem dos petiscos e das outras “grandes maravilhas da cozinha nacional”.