Afinal, quem é Anonymus Gourmet?

Há 20 anos nasceu na televisão brasileira um programa de gastronomia. Chamava-se Anonymus Gourmet numa altura “em que o conceito de gourmet no Brasil era zero”. Fomos conhecer o homem por detrás da personagem que até hoje é um sucesso.

A pergunta no título deste texto não faria qualquer sentido se estivéssemos no estado brasileiro do Rio Grande do Sul. Aí será difícil encontrar alguém que não reconheça o lacinho (gravata borboleta, como dizem os brasileiros), os óculos de aros grossos e redondos, e o sorriso bem-disposto do homem que há duas décadas fala de comida na televisão e se apresenta como Anonymus Gourmet.

Sentado à nossa frente num restaurante de Lisboa, numa recente passagem pela cidade, exibe, orgulhoso, o passaporte, onde aparece identificado com esse mesmo nome: Anonymus Gourmet. “Foi uma personagem de um livro que escrevi há uns 30 anos [O Brasileiro que ganhou o Prémio Nobel – Uma Aventura de Anonymus Gourmet], e que ficou muito marcada”, conta. “Era um homem muito exigente, mas partidário das coisas simples e de boa qualidade, e era contra esses enfeites que muitos cozinheiros fazem para disfarçar os erros”. 

Mas o homem dos óculos redondos e lacinho ao pescoço tem outro nome, e outra (ou outras) vida. Ele é (também) José António Pinheiro Machado, advogado, jornalista, escritor, antigo correspondente em Roma e em Paris, que esteve em Lisboa “durante a revolução dos cravos e muitas outras vezes depois disso”. E um apaixonado por cozinha a quem um dia propuseram que fizesse um programa no canal RBS-TV, que pertence à Rede Globo no Sul do Brasil, chamado Homem na Cozinha. “Eu achei o nome muito calhorda, achei que as mulheres iam detestar e sugeri dar-lhe o nome da personagem do meu livro?”. Nasceu o Anonymus Gourmet.

Ele descreve-o como “um programa de gastronomia com um olhar de jornalista”. Mas foi, acima de tudo, um programa de gastronomia quando (quase) não existiam programas de gastronomia. “Há 20 anos, a ideia de gastronomia e o conceito de gourmet no Brasil era zero”. Apesar disso, o programa pegou, e mesmo hoje, quando a concorrência se tornou feroz (“só na minha cidade, Porto Alegre, deve haver no mínimo uns 50 programas do género”, diz), continua a ter uma audiência invejável, e o Anonymus Gourmet tornou-se numa figura que não é nem apenas ficção nem apenas realidade, mas uma mistura das duas. 

Como é que o advogado/jornalista construiu a sua personagem? “O programa evoluiu muito. No início, não estava habituado à televisão e havia coisas mínimas que eram embaraçosas para mim. Por exemplo, como abrir o programa? Então comecei, e há 20 anos que abre assim: “’Aqui Anonymus Gourmet, no programa de hoje vamos fazer tal e tal coisa’”, assim, bem de jornalista”. Antes de cada intervalo diz aos espectadores: "Voltaremos!". E essa foi uma expressão que conquistou o público – muita gente passou a chamar-lhe ‘Seu Voltaremos’. 

Os outros trunfos do programa são o Alarico, “um menino que nasceu quando o programa começou a passar na Rede Globo, há dez anos, e que participa desde o primeiro ano de vida”. Também o Alarico, hoje com dez anos, tem um nome verdadeiro, Miguel Ângelo, e é sobrinho e afilhado de Anonymus. “A mãe do Alarico é irmã da minha mulher, e as duas também entram às vezes no programa, são a Doutora Márcia e a Doutora Linda. Como são advogadas tudo o mundo chama elas de doutoras”. E assim se completa o “universo Anonymus Gourmet”, que é uma história de família, mas também de comida. 

Apresenta receitas, claro – Anonymus tem mais de três mil feitas, e vários livros publicados – mas tem também um lado de divulgação, que é sobretudo um trabalho jornalístico. Houve já vários programas realizados em Portugal, por exemplo, divulgando a gastronomia de diferentes regiões. Anonymus acredita que “ninguém trabalha o peixe melhor que os portugueses”, e que “apesar de a qualidade média da carne não ter o nível da de Inglaterra, dos EUA ou da Argentina, num prato como o cozido os portugueses transformam uma carne média numa celebração”. Interessa-lhe esta arte de “usar o mínimo de recursos para o máximo de resultados”, como acontece também com os ovos moles, explica. 

Quer desfazer o mito da “cozinha como modelo de totalitarismo”, em que cada receita tem que ser seguida à risca porque se não sai errada. “Não tem nada de errado, cada um tem o seu jeito de fazer. Não tem que ser àquela temperatura. Eu digo sempre que forno é que nem marido, cada um sabe o que tem, deixa mais quente, ou mais frio, e vai cuidando”, diz, rindo. 

Preocupa-se em ser claro. Não esquece “uma menina que não devia ter mais do que 15 ou 16 anos, barriguda, com um bebé ao colo e mais uma criança pequena pela mão, na casa mais pobre de um morro onde fui padrinho de uma escola de samba”. Anonymus fez questão de subir a rua a pé, e de entrar na casa, que “tinha paredes de papelão, chão de terra, um fogão improvisado, mas no alto uma televisão e a luz, naturalmente, roubada da rede pública”. Quando o viu a olhar para o televisor, a menina disse: “A gente assiste ao seu programa todos os sábados”. E desde então, conta, “quando há uma coisa complicada, sempre me lembro de fazer uma subtil tradução, pensando naquela menina”. 

E é assim que, apesar do nome pomposo – “o Anonymus virou uma ironia” agora que todos o conhecem – consegue chegar às pessoas. “Um dia eu vinha pela rua e vejo um senhor daqueles que têm dignidade na sua pobreza. Ele pára e diz que me quer cumprimentar porque eu mudei a vida dele. Disse-me ‘eu até não tenho grande interesse nas suas receitas, mas o jeito que o senhor trata a comida impressionou-me muito’. E contou que trabalhava numa empresa em que tinha 30 minutos para almoçar. ‘Eu levava um recipiente e comia rapidamente, de pé, engolindo as coisas, e sentia-me como um bicho comendo. De repente, vejo o seu programa e penso vou fazer que nem o Gourmet. Tem um cantinho em que organizo a minha mesinha, boto um paninho, um pratinho, e como calmamente como o senhor faz no programa. E aquilo mudou tanto que se de manhã vejo o meu chefe irritado, penso ‘deixa que daqui a pouco eles vão comer que nem bichos e eu vou ter o meu momento gourmet’”. 

É isto, no fundo, ser gourmet. É disto, deste prazer de estar à mesa, que Anonymus vem falando há 20 anos.