Livro
Para onde caminham os enchidos portugueses?
Enchidos de qualidade - e de personalidade. Portugal tem, por tradição, uma imensa variedade de produtos derivados do porco, seja do bísaro, a Norte, ou do ibérico, a Sul. Alguns atingiram a excelência, outros correm o risco de desaparecer. Mas há espaço para a inovação, diz Fátima Moura, que acaba de lançar Sabores do Ar e do Fogo.
Já ouviu falar da farinheira de Monchique? É um enchido que parece vindo da Idade Média, ensacado num pano de lençol branco e cosido com linha de algodão. É feito com carne de porco de raça alentejana, do qual se usam o sangue e as carnes magras, e a que se juntam farinha de milho e especiarias. Tem uma cor escura e um gosto a canela.
"Temos enchidos saborosíssimos que a maior parte das pessoas não conhece", diz Fátima Moura, que acaba de editar o livro Sabores do Ar e do Fogo, com "os contributos inestimáveis" do coordenador José Quitério, do fotógrafo Mário Cerdeira, que assina todo o trabalho fotográfico e acompanhou toda a aventura, e dos CTT, responsáveis pela edição. "Esta farinheira de Monchique tem uma produção totalmente artesanal e em quantidades mínimas. Há o risco de que coisas como estas se percam."
Fátima, que é também autora do blogue Conversas à Mesa, andou dois anos, de Norte a Sul do país, atrás de porcos e das histórias a eles ligadas. "O porco tem uma importância cultural muito grande, sobretudo em certas regiões do Norte." Aí, conta, "os porcos viviam praticamente em casa, e eram criados pelas mulheres". Por causa dessa ligação - diz-se que se alguém sentir pena do animal, a carne não sai tão boa - estas estão geralmente ausentes no momento da matança (à excepção de uma, que segura a vasilha onde é recolhido o sangue).
É curioso que no Barroso a expressão "caixote do lixo" não existisse até à década de 70 do século XX. "Até aí, os restos de comida eram todos aproveitados para o porco. A expressão só surge nos anos anos 1970 com a palavra poubele, trazida pelos imigrantes vindos de França, e que trazem com eles também produtos que já dão origem a lixo."
Grande parte do livro é dedicada a esta relação íntima entre humanos e porcos, que culmina nesse momento único que é a matança. Há até um provérbio que diz "Morto por morto, antes a velha que o porco", o que demonstra bem a importância do animal na vida da família. "Se há reino maravilhoso em que o porco está no trono, não há dúvida de que este fica em Trás-os-Montes", escreve Fátima Moura. "Todo o ano se passa em redor de sua majestade e, quando chega a hora do adeus, a festa é de arromba."
Apesar disso, foi no Norte que o porco bísaro, uma das raças portuguesas (juntamente com o porco alentejano, mais conhecido como porco preto, embora esta não seja a designação correcta), esteve próximo da extinção. Os cruzamentos que se fizeram nas décadas anteriores com raças mais comerciais, para aumentar a produção - e também porque a carne mais rica em gordura foi sendo substituída nas mesas por carnes magras como o frango ou o peru - puseram em risco as raças autóctones. Com isso, explica a autora, "a carne de porco foi-se tornando cada vez mais magra, e nem se conseguia fazer enchidos com ela."
Mas o bísaro, que é uma raça do tronco celta, foi recuperado nos anos 1990 pela Associação de Produtores "a partir de umas dezenas de animais que encontraram numas pocilgas escondidas". Hoje, porco bísaro é sinónimo de qualidade e a carne destes animais é cada vez mais procurada, embora, escreve Fátima, "poucos são ainda os portugueses que, mesmo em Trás-os-Montes, identificam um porco branco e/ou cinzento-escuro, de grandes orelhas penduradas, cabeça comprida e marcha desajeitada, cerdas grossas e compridas, que nos lembram a sua descendência do javali, como sendo o bísaro". E, alerta, seria bom que a produção fosse feita mais em regime extensivo, porque a maioria dos animais continua ainda confinada a pocilgas.
Quando ao primo do Sul, o porco alentejano, é um animal mais frequentemente criado em regime extensivo, alimentado a bolota durante a época da montanheira e "com a gordura mais infiltrada nas carnes", o que lhe dá um gosto muito especial. E que dá presuntos que são "o ex-líbris da nossa salsicharia". No livro, Fátima destaca dois: o de Barrancos (DOP, Denominação de Origem Protegida), identificado com "a lindíssima Cruz de Avis", e o de Santana da Serra (IGP, Indicação Geográfica Protegida), que "ostenta a Cruz de San'Tiago da Espada".
Mas, apesar de nobres, os presuntos são apenas um exemplo do que se pode fazer com a carne de porco. E se aqueles contam uma história de preservação, e de como essa preservação revela novas potencialidades num alimento, os enchidos contam uma história de um país pobre, onde, com grande imaginação, tudo se aproveitava de um porco depois da matança.
Há-os de muitos tipos. Os de sangue, como a chouriça de sangue de Melgaço, um produto IGP feito com "carnes ensanguentadas e gorduras de bísaro, ou cruzado com este, sangue, vinho verde, cebola, alho, sal, pimenta, coloraus e cominhos". Ou as de carne, de Vinhais e Barroso-Montalegre (IGP). Ou o salpicão do lombo, que leva as carnes magras mais nobres, temperadas com alho, sal, vinho verde e colorau (Fátima destaca, pela sua popularidade, o salpicão da serra d'Arga ou o de São Lourenço, e o de Vinhais, também IGP, que só pode ser feito com bísaro).
Há os enchidos em que se usa a farinha e o pão - e temos aí todo o universo das tão populares farinheiras e alheiras. E os enchidos doces, com açúcar e mel, como as morcelas e as chouriças doces. Mas há também os buchos, em que é o estômago do animal (que pode ser porco, cabra ou carneiro) que é recheado com "variações infinitas, desde as mais humildes às mais ricas". E, dentro destes, um subgénero como os maranhos, recheados com arroz, e servidos cozidos e cortados às fatias, acompanhados por nabiças ou grelos.
Renovar a tradição
Apesar de toda a defesa que faz da tradição, Fátima insiste numa ideia: "A melhor forma de manter a tradição é ir adaptando-a. Se não, ela acaba por morrer." Apesar de saber o quanto as pessoas são agarradas à tradição, no último capítulo do livro autora arrisca algumas propostas que transformam receitas clássicas em versões modernas dos mesmos pratos, com outra apresentação e, garante, o mesmo gosto.
Veja-se o sarrabulho minhoto, prato feito à base do sangue do porco. Respondendo ao desafio, o chef Vítor Matos, da Casa da Calçada, em Amarante, apresenta a receita tradicional e uma recriação, com peito de galinha enrolado em sarrabulho e trufa e cozido em caldo de carnes, com espuma do caldo, esferificação de sarrabulho e tiras de toucinho de bísaro. Arriscado?
"Se não for renovada a tradição morre", repete Fátima Moura. É importante, por exemplo, conseguir reduzir o sal nos enchidos, defende. E lembra que até o butelo (enchido à base de ossos, de Trás-os-Montes), foi evoluindo de uma versão muito pobre, quase sem carne, para a actual versão, com bastante carne.
É preciso, no entanto, manter algumas das especificidades, defende. "Em relação ao presunto alentejano, dominamos completamente a técnica. O que temos é que lutar para manter as características do nosso presunto transmontano, que é muito diferente do do porco ibérico." É um presunto que habitualmente se comia em nacos e não em fatias finas, como se tornou hábito com o porco ibérico e com as técnicas de corte usadas em Espanha.
"O tipo de presunto espanhol impôs-se muito entre nós e no mundo inteiro." Mas Fátima entende que, em vez de ir atrás dele, o presunto transmontano deve assumir a sua identidade própria, a sua carne mais fibrosa. Mas para que isso aconteça é essencial que os restaurantes locais o assumam também, com orgulho, na cozinha regional, não o querendo transformar numa imitação do seu primo do Sul.
Esta é, portanto, uma luta pela identidade e a especificidade dos enchidos e derivados do porco portugueses, por uma relação com o animal que é profundamente cultural, mas é uma luta que, na opinião de Fátima, tem que se travar aceitando que, no processo, algumas coisas podem - e devem - ser mudadas. "A tradição é sempre o resultado de uma evolução", conclui. "Se ainda comêssemos à moda do século XVIII estávamos cheios de gota."