Sangue na Guelra
Os "número 2" da cozinha mostram o que valem
São os “número 2” em restaurantes de topo. Estão nos bastidores (neste caso, nas cozinhas) e são fundamentais para que os locais onde trabalham tenham conquistado estrelas Michelin. Trabalham em equipa com os chefs mais mediáticos e geralmente não aparecem em público, mas durante o festival Peixe em Lisboa, tiveram os holofotes virados para eles. A empresa Amuse Bouche convidou-os a fazer dois jantares, só com peixe e marisco, na Cantina da Estrela, em Lisboa. Eles puseram mãos à obra e mostraram o que valem.
Matteo Ferrantino
Vila Joya, Algarve (duas estrelas Michelin)
Com o primeiro prato apresentado por Matteo Ferrantino ouviram-se “ais” e “uis” nas mesas. A opinião foi unânime: magnífico. Matteo encolhe os ombros e sorri: “Não estava mal”. Mas depois admite que era um prato com “muita cozinha”, apesar da aparente simplicidade – chamava-se apenas Lírio, Couve-flor e Caviar, um nome que escondia a complexidade de sabores que ali se encontravam. Trazido para Portugal por Dieter Koschina, o chef do Vila Joya, o italiano Matteo veio uma primeira vez por um ano, regressou à Áustria onde trabalhara antes e aí ficou por mais três anos, até Koschina ir buscá-lo novamente. Agora está em Portugal há seis anos e diz que ele e Koschina são “a combinação perfeita”. “Ele tem a base da cozinha clássica francesa e um sabor autêntico e incrível. Eu sou mais novo, tenho um pouco mais de criatividade. Ele é o chão, eu sou o tecto. Mas sem chão não existe tecto”. Neste jantar não quis arriscar. “Quando cozinho fora não experimento nada”. Para além do lírio, apresentou Bacalhau, Trufa preta e Pata negra, um prato de sabores fortes para ser servido com vinho tinto. Quanto ao futuro, promete uma surpresa, na qual está envolvido. “Está a caminho uma coisa grandiosa para Portugal”. E mais não disse.
Foto: Miguel Manso
David Jesus
Belcanto, Lisboa (uma estrela Michelin)
Quando lhe perguntamos qual é a sua forma de cozinhar, David Jesus responde no plural: “A nossa forma de cozinhar…”. Fala dele e de José Avillez, o chef com quem começou a trabalhar no Tavares, e que acompanha agora no Belcanto, onde é sócio (antes trabalhou com Augusto Gemelli e com Aimé Barroyer). O que apresentou no Sangue na Guelra é o resultado de um conceito, e de anos de trabalho com Avillez, explica. “Não posso ser incoerente ao ponto de durante cinco anos trabalhar acreditando numa coisa e vir aqui fazer outra completamente diferente”. E qual é esse conceito? “Produto português sempre que possível, embora não sejamos radicais ao ponto de não aceitar outros. Mas se pudermos trabalhar com o melhor peixe de Portugal, se conseguirmos usar o cordeiro de leite português, então não faz sentido usar produtos internacionais. Depois, respeitar ao máximo esse produto, e tentar seguir alguma base de cozinha tradicional portuguesa”. Foi o que fez com o Pargo com ameijoa, Pancetta ibérica e Chouriço que apresentou neste jantar. “É uma tentativa de revisitar um prato tradicional português”. Mas na Navalheira azul com Creme de caril arriscou introduzir um toque mais pessoal. “O meu pai é indiano e sempre me habituei a comer alguns mariscos com caril. Por acaso foi o José [Avillez] que me disse ‘aproveita, faz uma coisa diferente, puxa pela tua casa’”.
Foto: Miguel Manso
Yoji Tokuyoshi
Osteria Francescana, Modena, Itália (três estrelas Michelin)
Se não fosse um homem de acreditar em últimas oportunidades, o japonês Yoji Tokuyoshi, sub-chef na Osteria Francescana (três estrelas Michelin), o restaurante de Massimo Bottura em Modena, Itália, poderia não estar aqui, em Lisboa, a participar no jantar Sangue na Guelra. Na realidade, poderia ter tido uma vida muito diferente. O que mudou tudo foi não ter desistido mesmo quando parecia que já não havia qualquer hipótese. É ele quem conta a história, em italiano: “Trabalhei dois anos em restaurantes italianos em Tóquio, mas queria aprender a verdadeira cozinha italiana e decidi ir para Itália”. Com a ajuda de um amigo italiano telefonou para “uns 40 ou 50 restaurantes a pedir trabalho e todos disseram que não”. O dinheiro acabou e Yoji decidiu voltar para o Japão. Ia a caminho do aeroporto de Milão e viu um guia de restaurantes à venda. Comprou-o com as últimas moedas que tinha, e viu o nome da Osteria. Ligou, disseram-lhe que sim, que aparecesse, e ele rasgou o bilhete de avião. No primeiro dia almoçou com o próprio Bottura e, no dia seguinte, estava a trabalhar. Em Lisboa, esqueceu a cozinha italiana e recuperou o seu lado japonês. Apresentou primeiro uma Salada do mar, brincando com os bonecos que se fazem na praia com formas de areia e os sabores do peixe; depois, um Chá verde com Peixe fumado, prato com legumes crus e a saber realmente a verde, em terceiro, um prato com todas as partes do atum (incluindo a gelatina dos olhos), e, por fim, uma brincadeira com o pão que limpa o prato quando já chegamos ao fim de uma refeição.
Foto: Miguel Manso
Leo Carreira
Viajante, Londres (uma estrela Michelin)
Veio de Londres, do restaurante Viajante, do português Nuno Mendes, e define-se também ele como um viajante. E isso é algo que quer mostrar com a sua cozinha. “Desde que saí de Portugal, aos 24 anos [hoje tem 34] tenho viajado bastante”. Formou-se em Leiria, mas depois percorreu muitos restaurantes diferentes em várias partes do mundo. A experiência mais marcante foi a do Mugaritz, no País Basco. “Foi uma experiência crucial: aprendi e apurei técnicas, apaixonei-me ainda mais pela cozinha e coloquei tudo isso ao serviço da criatividade”. Foi no Mugaritz que, em 2008, conheceu o Nuno Mendes. Depois surgiu o projecto do Viajante, e Leo abraçou-o com todo o entusiasmo. Da sua cozinha espera que seja “elegante, acima de tudo saborosa, com ligação a Portugal” porque, acredita, “há muito que se pode explorar”. Pensa um pouco e acrescenta: “Quero que seja sustentável, e, sobretudo, que não seja pretensiosa”. O seu primeiro prato, Perceves com Água do mar e Alface do mar, esconde numa aparente simplicidade a riqueza da técnica que gelou o sabor do mar combinando-o com iogurte grego. Do mar português veio também Sapateira com Coral e Manteiga Tostada. Reconhece que foi difícil desvincular-se da cozinha do Mugaritz e construir um caminho próprio, mas sabe que percursos pessoais demoram necessariamente. “Com o tempo vamos sabendo beber dos sítios por onde passamos, é um percurso de construção, até que um dia a casa fica construída e começa-se a habitar nela.”
Foto: Miguel Manso
João Rodrigues
Feitoria, Lisboa (uma estrela Michelin)
Faz surf desde os 14 anos e só aos 20 entrou pela primeira vez numa cozinha. Ainda que as duas actividades pareçam totalmente distintas, João Rodrigues encontra-lhes uma paixão em comum: o mar. “Gosto de trabalhar todo o tipo de peixe, sobretudo salmonetes, perceves e ostras”. No Sangue na Guelra, onde esteve em destaque no segundo dia, Rodrigues explorou outras possibilidades como o atum, o lírio japonês, ouriços-do-mar, carabineiro e sargo-veado, uma variante de maiores dimensões que confessou ter cozinhado “pela primeira vez”. Tendo sido responsável por quatro dos dez pratos que compuseram o segundo jantar do Sangue na Guelra, João Rodrigues teve de ser tão versátil quanto produtivo. E foi-o realmente, começando pela composição requintada de Atum, Lírio japonês, Espargos e Caviar, o seu primeiro prato, para acabar numa evocação de uma cuisine plus française com Sargo-veado com Chuchu e Ameijoa Real. Ainda que nunca tenha pensado na cozinha “como um modo de vida”, o convite do chef Cordeiro fê-lo mudar de perspectiva. Está a seu lado no Feitoria desde o início, em 2009. “Acho que somos a extensão dos chefs: eles confiam muito em nós mas temos que trabalhar muito por merecer essa confiança.”
Foto: Paulo Barata/Guerrilla Food Photography
Florian Rühlmann
Ocean, Algarve (duas estrelas Michelin)
Há pessoas que, quando as encontramos, mudam o rumo da nossa vida. Olhando para Lingueirão, Polvo-bebé, Grão-de-bico e Pata Negra, o prato que marcou a estreia de Florian Rühlmann no Sangue na Guelra, lembramo-nos imediatamente de Hans Neuner e de outras experiências no Ocean, o restaurante algarvio onde ambos trabalham lado-a-lado. “Conheci o chef Hans Neuner no hotel Adlon, em Berlim. Mas, sinceramente, trabalhar com o Hans não é nada fácil! Ele é muito exigente e rigoroso e nunca está satisfeito com o resultado final. Após tantos anos, creio que o entendo perfeitamente, mas é um desafio permanente”, explica. Juntos desde esse primeiro encontro na cozinha do Adlon, em 2003, as semelhanças entre o estilo de ambos revelaram-se na segunda noite de jantares. Se a composição dos pratos e o gosto pelo jogo de texturas lembra Neuner, o chef alemão fez uma declaração de independência através dos molhos. Quem poderá esquecer o caldo de pimentos do segundo prato, Salmonete, Pimento, Funcho Selvagem e Mexilhão? “Gosto de explorar a cozinha da ‘região’ e as suas referências culturais. Talvez por isso um dos meus produtos preferidos seja a sardinha!”, afirma o chef que começou a trabalhar numa cozinha aos 16 anos.
Foto: Miguel Manso