19 de Março
Lições de pai
Palmadas, brinquedos jogados fora e valores para sempre são algumas das memórias que Joana Afonso e Nuno Medeiros aceitaram partilhar connosco. João Miguel Tavares falou-nos do seu livro O Pai mais Horrível do Mundo e de como foi “um filho chato”. Nesta terça-feira, o calendário assinala o Dia do Pai.
Mais do que impor regras, o que José Afonso transmitia aos filhos eram valores de partilha e de respeito pelo outro, “mas também queria o quarto arrumado”, conta Joana Afonso, 47 anos. Lembra-se de uma disputa entre ela e o irmão Pedro, com menos quatro anos e meio, que acabou com um brinquedo novo no lixo. “Não me recordo de qual era o brinquedo, mas estávamos naquelas discussões: ‘É meu’, ‘é meu’, ‘não é nada, é meu.’ Ele veio e deitou-o fora. ‘Não é de ninguém. Nunca mais quero ouvir essa discussão’.” Resultou até hoje. “Não tivemos mais discussões dessas. O meu pai não suportava o egoísmo. Era tudo na base de: ou é de todos ou não é de nenhum!”
Joana Afonso ri-se ao recordar um outro episódio em que ambos, Joana e Pedro, não queriam sair de casa porque ia “dar qualquer coisa na televisão”. E fizeram finca-pé. O desfecho foi a televisão ir passar uma temporada na casa da porteira. “O meu pai achava que devíamos aproveitar o tempo livre na rua, devíamos sair e passear sempre que pudéssemos. Ele detestava que a televisão nos impedisse de fazer outras coisas bem mais importantes. Se fosse hoje, seria mais difícil, com toda a oferta televisiva que temos. Mas éramos todos espectadores assíduos do Vasco Granja!"
Não se recorda de castigos, nem de zangas, só de um ou outro raspanete. “Nem sequer se zangou comigo quando chumbei um ano.” Mas duas palmadas vêm-lhe à memória. A primeira já esqueceu o motivo, a segunda lembra-se bem. Foi numa viagem de carro para Espanha, em que as “tolices” dos dois irmãos (ambos filhos de Zélia Afonso) fizeram estragos: “A ‘lamparina’ que levei foi a gota de água de uma viagem supostamente tranquila e prazenteira, que eu e o meu irmão conseguimos infernizar com uma série de tropelias.”
O episódio, na opinião de Joana, até “foi cómico”. E descreve-o assim: “Depois de alguns dias de viagem stressante, há um parvalhão que decide encostar o nosso carro e pedir contas porque dois miúdos lhe faziam [o gesto de] cornos. O meu pai passou-se com o tipo, que era obviamente um idiota.” No entanto, a palmada que Joana recebeu não veio logo. “Depois de muitos quilómetros percorridos em silêncio e ambiente pesado, levei um estalo. Ele já devia estar de saco cheio, por razões óbvias.”
Vivendo em casas sempre cheias de gente e movimento, “com muitos amigos a entrar e a sair a qualquer hora”, Joana Afonso diz que não havia rigidez no cumprimento daquelas regras das famílias mais tradicionais, com horas certas para as refeições ou para deitar. “Tivemos uma educação muito livre e permissiva, no bom sentido. Só nas questões de ordem ética é que o meu pai era intransigente.” E hoje dá-se conta de que reproduz com o seu filho, José (cinco anos), os mesmos princípios. “Sigo ideais muito semelhantes, embora o contexto seja outro.”
Antes de Joana e Pedro, o cantor teve dois filhos com Maria Amália de Oliveira: José Manuel, que nasceu em Janeiro de 1953, e Helena, que nasceu em Dezembro do mesmo ano.
Estragar O Capital e surripiar bonecos
Nuno Medeiros, 40 anos, filho do livreiro Manuel Medeiros, sabe que quando estava a aprender a andar estragou um exemplar de O Capital, de Karl Marx: “Agarrei-me ao que estava na prateleira e arranquei a capa e algumas folhas.” Não sabe se o pai ralhou com ele, “nunca me contou, mas talvez se tenha zangado, sobretudo por ser O Capital…”, diz divertido. Mas quer contar uma lição que recebeu do pai, conhecido como Livreiro Velho, e de que se lembra bem.
A livraria dos pais, a Culsete, em Setúbal, também vendia brinquedos, e Nuno Medeiros acompanhava-os a Lisboa para os escolher num armazém de revenda. “Era a Brincotécnica. E eu sentia-me a entrar na caverna do Ali Babá.”
Numa dessas deslocações à capital, “uma odisseia”, teria seis ou sete anos, o rapaz ficou “a observar com muito desejo uns bonecos, em PVC, inspirados no Lucky Luke”. O vendedor reparou e ofereceu-lhe um cavalo. “Às tantas, eu achei que podia ter mais duas ou três personagens para acompanhar. E, sem ninguém perceber, abri a vitrina, tirei dois ou três bonecos que estavam ali para amostra e guardei-os bem guardadinhos”, conta com ar malandro.
Já em Setúbal, a mãe, Fátima Medeiros, notou que ele estava a brincar com um boneco que ela não conhecia. “Pouco tempo depois, perceberam que eu me tinha apoderado da bonecada. E o meu pai disse-me logo: ‘Isto não pode ser’.”
Uma ou duas semanas depois, o vendedor aparece na loja para tratar das contas. “E eu, envergonhadíssimo, mas já industriado pelo meu pai, fui buscar os bonecos. Quando os viu, o meu pai disse que faltava um.” Nuno não queria acreditar: “Era o cavalo que me tinha sido dado.” O vendedor, “muito simpático”, ainda disse que não era preciso, que não havia problema. “Mas tive mesmo de ir buscar o outro boneco e entregá-lo. E só ouvi o meu pai dizer: ‘Quem tudo quer tudo perde’.”
Que se lembre, não voltou a tirar nada a ninguém, “talvez ao fisco, de vez em quando”. Nuno, que agora também é pai, considera ter sido “uma lição bem dada”. Lembra-se ainda de levar algumas palmadas, mas não tantas como o irmão: “Era mais velho e mais traquina, apanhou mais sovas, coitado.”
O dever de ter filhos
O jornalista João Miguel Tavares sabe que, até aos cinco anos, “era o filho mais chato do mundo, berrava sem parar”. Depois, tornou-se “irritante, mas de outra forma”, diz. “Era tão calminho que, aos 15/16 anos, os meus pais tinham de me empurrar para fora de casa. Eu ficava fechado no quarto a ler.” Tem um irmão, quatro anos e meio mais velho. “Um grande irmão, de quem gosto muito. Não tivemos aquela experiência de brincar juntos, só quando apareceu o ZXSpectrum 48K”, conta bem-disposto.
Sobre “as lições do pai”, envia-nos uma mensagem via email: “É um daqueles velhos alentejanos que fala por acções. Nunca foi de grandes conselhos.” João Miguel Tavares recorda que o mais importante que os pais fizeram por ele aconteceu já na idade adulta, teria à volta de 20 anos. “Decidi abandonar o curso de Engenharia Química no Técnico e voltar ao 12.º ano para estudar e reentrar em Ciências da Comunicação. Eram eles que me pagavam os estudos, e simplesmente respeitaram a minha decisão e confiaram em mim. Mais uma vez, sem grandes palavras. Mas esse respeito e esse apoio, jamais o esquecerei, e tento desde então estar à sua altura.”
Agora, acaba de publicar O Pai mais Horrível do Mundo (ilustrações de João Fazenda, edição da Esfera dos Livros), um livro inspirado no seu filho Gui (cinco anos). Mas tem mais três: Carolina (nove), Tomás (sete) e Rita (seis meses).
O livro reproduz situações quotidianas, em que um pai “só” quer educar e proteger o filho. “Estamos sempre a corrigi-los, mas o facto é que os nossos filhos nascem um bocado selvagens. Essa parte de socialização das crianças é uma espécie de domesticação, não há muito como fugir a isso.”
Para quem decidir ser pai, o autor do blogue Pais de Quatro acha por bem alertar para “o discurso cor-de-rosa”, ainda muito comum. “A desilusão dos pais por não estarem à espera de ser tão difícil provoca muitas vezes o desmoronar de relações. Não estão preparados para aquilo.” Por isso considera importante “terem consciência de que nem sempre é giro, é giro muitas vezes, mas também é muito difícil e custoso”.
Vem-lhe à memória um diálogo do filme Lost in Translation: “No dia em que ele nasce, a tua vida acaba. Pelo menos, como a conheceste. Depois crescem e tornam-se as coisas mais adoráveis.” E conclui: “Duas verdades difíceis.”
O colunista do PÚBLICO e autor da crónica Os Homens Precisam de Mimo do Correio da Manhã conta como no início se sentia muito angustiado. “Tenho uma relação difícil com bebés. Tenho de aguentar até eles entrarem na linguagem e conseguir comunicar com eles.” E isso pode acontecer com outros, avisa.
Para quem não quer ser pai, diz ter uma “posição um bocado alemã”: “Qualquer um de nós que tenha capacidade para isso tem a obrigação de ser pai.” E continua: “Tem que ver com a visão filosófica que cada um tem do mundo e da existência. Como humano, tenho esse dever. O de ter filhos.” Já o cumpriu.