- Os ingredientes-chave para uma açorda à alentejana Enric Vives Rubio
- A chanfana é uma das mais requintadas celebrações da cozinha tradicional e da arte de aproveitamento culinário Ricardo Silva
- A lampreia é uma iguaria sazonal que gera ódios e paixões como nenhum outro cozinhado Adriano Miranda
- Caldo de castanhas Nelson Garrido
- A doce sericaia Nelson Garrido
- Perdiz de escabeche Fernando Veludo
- As várias travessas de um rico cozido à portuguesa Daniel Rocha
- Capão assado, uma iguaria rara e que, por isso, pede marcação prévia Rui Farinha
Inverno
Comida para aquecer o estômago e a alma em dias frios
Do Minho ao Algarve, sugestões de iguarias “pesadas”, sim, mas que reconfortam até à medula.
Açorda alentejana:
De comida de campo até às casas mais ricas
Nasceu como “comida de pobre”. Num país em que o pão foi sempre fundamental como base da alimentação surgiram vários pratos a ele ligados — e no Alentejo em particular. É desta região o gaspacho alentejano (sopa fria, com tomate, pepino, pimento, alho, azeite e pão), assim como a sopa de cação (também com pão). Como acompanhamento surgem frequentemente as migas.
Mas o prato mais emblemático do Alentejo é mesmo a açorda. Muito simples, era feito pelos homens nas pausas dos trabalhos de campo. Na base estão o azeite, o sal, o alho e coentros ou poejo, ou ambos. Estes ingredientes são esmigalhados num almofariz, transformando-se numa pasta a que é dado o nome de piso, e sobre a qual é deitada água a ferver e pão cortado grosseiramente (a este pão migado os alentejanos chamam “as sopas”).
De prato de substância comido no campo passou também às casas mais ricas, onde foi sendo acrescentado com ovo, que pode ser escalfado ou cozido, e peixe, que é muitas vezes bacalhau. Pode ainda levar, por exemplo, amêijoas, ou ser acompanhada por sardinhas fritas ou ainda figos (que podem ser comidos separadamente ou colocados dentro do caldo) ou uvas.
No seu site, o gastrónomo Virgílio Gomes cita um livro editado pela Confraria Gastronómica do Alentejo, de Évora, que refere outras receitas de açorda, enriquecidas, por exemplo, com linguiça, toucinho e tomate (a de Serpa), espinafres, ou queijo (que pode ser de ovelha ou de cabra). Em Évora, no restaurante Moinho do Cu Torto (Horta das Figueiras), costuma havê-las de gabarito. Alexandra Prado Coelho
Cozido algarvio:
Com carnes de borrego, grão e feijão verde
Encontramos pratos de cozido em praticamente todo o país. Haverá, escreve Hugo Campos no livro Maravilhas da Gastronomia de Portugal, mais de 60 variações e admite-se que se possa tratar de uma receita de origem judaica: “Como os judeus não podiam acender o fogo e cozinhar no dia de Shabat, cozinhavam de véspera as carnes e vegetais que seriam consumidos após o pôr do sol do dia de descanso.” O problema desta teoriaé que não faria sentido encontrar carne de porco num prato judeu — embora também se possa contra-argumentar que seria uma forma de os judeus tentarem passar por cristãos.
Comuns a todos os cozidos são as carnes (normalmente vaca, chispe, orelheira, chouriço de sangue, chouriço de carne, farinheira, toucinho; pode ser usado também frango ou galinha) às quais se juntam as batatas, as couves, o feijão branco, nabos, cenouras, e ainda arroz branco. No sul do país, Alentejo e Algarve, surge uma variante que é o cozido de grão, de que um bom exemplo é o que é servido no restaurante A Charrette, em Monchique. Nestes cozidos, para além do grão, é acrescentado feijão verde, espinafres e abóbora, sendo que a carne utilizada é a de borrego e não a de vaca, e entre os enchidos podem aparecer variedades como o chouriço mouro. Por cima deste cozido, para temperar, usa-se hortelã. Alexandra Prado Coelho
Capão
Único no restaurante São Gião
O mais difícil é encontrá-lo, já que o capão, para o ser, exige uma delicadíssima e complexa operação para que o frango seja capado logo em tenra idade. É depois de privado das “alegrias” que o bicho se desenvolve de forma imponente e as suas carnes ganham especial sabor e suculência.
São, como está bom de ver, muito poucos os criadores de capão no nosso país, concentrando-se em Freamunde, Paços de Ferreira, o principal esforço para manter a tradição de criação. Deve-se à respectiva associação o louvável trabalho técnico de formação, estando também praticamente concluído o complicado processo de certificação, que permitirá que o capão possa ser comercializado em todo o país. Embalado em vácuo e em partes, e portanto ao alcance de todos e durante todo o ano.
Por enquanto encontra-se sobretudo em restaurantes das zonas do Tâmega/Sousa e Baixo Ave, sendo quase sempre necessária encomenda antecipada, já que é necessário matar e preparar o bicho de véspera. A excepção é a quinzena do Capão à Freamunde, sempre antes do Natal, quando os restaurantes da zona o têm nas suas ementas diárias.
Caso distinto é o do restaurante São Gião (Moreira de Cónegos, Guimarães), onde o chef Pedro Nunes o prepara de forma soberba. Assado no forno, com recheio à base dos miúdos e enchidos de produção própria, acompanha com batatinha assada, farófia frita e chouriça assada. Mesmo único.
Como ainda recentemente nos explicou o prestigiado cozinheiro, o pitéu pode ser servido ao longo de boa parte do ano, desde que seja solicitado com dois ou três dias de antecedência: além da encomenda ao produtor é necessário também que os trabalhos preparatórios decorram desde a véspera para que tudo resulte na perfeição. José Augusto Moreira
Sopa da pedra
Desviar o caminho até Almeirim
A fama do prato é nacional, mas se há uma localidade identificada com a sopa da pedra é Almeirim. Difícil é escolher entre tantos restaurantes que a apresentam como especialidade da casa. Diz-se que a sopa nasceu no restaurante O Toucinho (Rua de Timor, 2), onde o patriarca José Manuel “Toucinho” começou a vender aos viajantes uma sopa rica, com uma base de feijão e com vários enchidos. O sucesso foi tal que começou a haver quem se desviasse do caminho para ir de propósito a Almeirim.
A história do Toucinho mistura-se com a lenda que conta que um frade espertalhão, não tendo o que comer, andava de casa em casa com uma panela e uma pedra, e convencia quem lhe abria a porta a dar-lhe só um ingrediente para a sopa. E, ingrediente atrás de ingrediente, nasceu a muito substancial sopa da pedra, prato ideal para retemperar as forças em dias de Inverno.
Quem a quiser cozinhar em casa deve saber que dá algum trabalho — começa-se por demolhar o feijão (em alternativa pode-se utilizar feijão novo) antes de o cozer. As carnes (toucinho, orelha, chouriça, morcela, farinheira) são cozidas à parte, assim como as batatas. Deixam-se arrefecer as carnes fora do lume e juntam-se depois ao resto. Fundamental é colocar uma pedra lavada no fundo da panela em memória do frade espertalhão. Alexandra Prado Coelho
Perdiz
No Afonso, à moda da D. Bia
De entre a variedade de pratos de caça, a perdiz é talvez aquele que maior consenso e simpatia consegue entre os aficionados. E será também dos mais elegantes e sofisticados, já que, ao contrário de outros que são quase sinónimo de primitivismo e ruralidade, a perdiz é muitas vezes associada a uma cozinha distinta e requintada.
Obedecendo à sazonalidade do exercício da caça, deverá ser mortificada antes de encaminhada ao trato culinário. Quer isto dizer que deverá ser pendurada pela cabeça durante alguns dias em local fresco e arejado para que a carne fique mais tenra e saborosa. Quanto mais demorado o processo, mais intenso o sabor da carne.
São muitas e variadas as formas de preparação e só na última edição do Livro de Pantagruel são indicadas mais de duas dezenas de variantes culinárias, grande parte usadas indistintamente pelas várias regiões do país.
Talvez pela maior abundância e diversidade, será no Norte do Alentejo que os pratos de caça terão maior presença e variedade. Um dos mais afamados é a Perdiz à D. Bia, do restaurante Afonso, na vila de Mora. A receita é um segredo bem guardado há quase meio século, desde que o prato confeccionado pela proprietária e cozinheira começou a atrair clientela de todos os lados.
No fundo, não deverá andar muito longe da perdiz no tacho, com margarina e manteiga temperadas com cravinho, cominhos, pimenta, alho e louro. O fundo do tacho de barro é forrado com tiras de toucinho e quando começar a alourar é regada com vinho branco e um
pouco de conhaque, estufando lentamente em lume brando até que fique bem macia. Além da batata frita em cubinhos, D. Bia serve-a sobre saborosas tostas de pão frito em azeite. Uma delícia. José Augusto Moreira
Sopa seca
Com açúcar, mel e as carnes do Entrudo
Se bem que seja difícil encontrá-las hoje em qualquer restaurante, as sopas secas são uma tradição bem antiga da nossa cozinha de Inverno e não são mais que um hábil aproveitamento de restos de outros cozinhados, normalmente enriquecidos com mel e açúcar para se tornarem mais atractivos para a criançada.
Como eram coisa de cozinha de pobres, normalmente em aldeias de montanha, e como nos restaurantes, mesmo naqueles mais fiéis ao receituário tradicional, não será de bom tom o aproveitamento de restos, este será um cozinhado já praticamente fora de uso.
Mas como os tempos não estão mesmo para desperdícios, aqui vai uma das mais ricas e contundentes receitas, que junta pão, açúcar, mel e as carnes do cozido. Ou seja, tanto pode ser servida como sopa de entrada, prato principal ou sobremesa. Ou ainda, e porque não, como prato único, que era o que acontecia pelas aldeias das serras do Marão ou Gerês no dia seguinte ao Entrudo.
A celebração do Carnaval incluía sempre um farto cozido, cujas carnes de frango, vaca e porco (incluindo presunto e enchidos) eram aproveitadas no dia seguinte, juntamente com pão velho. Fundamental é a calda do cozido, à qual se junta mel, açúcar amarelo, canela e uma rodela de limão. Forra-se o fundo da caçarola ou assadeira com o mesmo açúcar, canela e louro, colocando depois sucessivas camadas de pão e das carnes (esfiadas), sempre regadas com a calda enriquecida até encher o recipiente, voltando a polvilhar
com açúcar, canela e louro. Vai ao forno coberta, para não queimar, e só se destapa depois de entrar em fervura, deixando-se então tostar um pouco. O Carnaval está mesmo aí a chegar. José Augusto Moreira
Lampreia
O divino ciclóstomo
Em cabidela de arroz ou em aveludados refogados, é na utilização do sangue do próprio animal que se centra o trabalho culinário em volta desta iguaria sazonal que gera ódios e paixões como nenhum outro cozinhado é capaz.
Degusta-se um pouco por todo o país mas é acima do Tejo que tem o seu principal culto, com especialíssima incidência na densa malha hidrográfica do Minho. Mas também nas bacias do Douro e Mondego, se bem que nestes casos a construção, nas últimas décadas, de barragens e eclusas tenha tido o efeito de fazer esmorecer o fervor de outros tempos.
A maior fama vai, no entanto, para as lampreias do rio Minho, que têm também em Lisboa muitos e fervorosos adeptos. E com o início da temporada, pelos dias que correm, é ver surgir à porta de muitos restaurantes da capital os já célebres cartazes anunciando que “há lampreia do rio Minho”.
Apreciado já desde o tempo dos romanos, aquele que designam como “divino ciclóstomo” tem no arroz de cabidela o seu expoente máximo. A receita, asseguram os puristas do Alto Minho, é aquela que constava já do livro que a Infanta D. Maria levou no seu enxoval quando casou com o Duque de Parma, em 1538. A obra está agora na biblioteca de Nápoles e nela se explica que o segredo está no uso de pimenta e cravinho, associados ao louro, salsa e
cebola, seguindo os quatro passos fundamentais: escaldá-la ainda viva (mas com o cuidado de não entrar logo em cozedura); aproveitar todo o sangue (que é misturado com vinagre de vinho num recipiente); retirar a tripa/espicha sem a rebentar; mariná-la com vinho tinto.
Por estes dias degusta-se já nos mais diversos restaurantes das margens do Minho, como é o caso do singular Amândio, em Caminha, o requintado Quinta do Prazo, em Valença, ou os opulentos Adega do Sossego e Panorama, já em Melgaço. José Augusto Moreira
Sericaia
O segredo está nas colheradas desencontradas
É do Alentejo que vem o doce conhecido como sericaia (mas que por vezes também é identificado como cericaia ou sericá), e que entretanto se tornou popular noutras regiões do país. Mas é possível que este doce feito à base de leite, ovos, farinha e açúcar tenha a sua origem muito longe de Portugal. Conta-se, recorda Hugo Campos em Maravilhas da Gastronomia de Portugal, que a receita terá sido trazida de Malaca pelo copeiro de D. Constantino de Bragança, 7.º vice-rei da Índia. Mas não há certezas. O que se sabe é que dois conventos, o das Clarissas de Elvas e o das Chagas de Vila Viçosa, disputam entre si o estatuto de local de origem, em Portugal, da sericaia.
Apesar de ser uma receita simples, há um segredo na sua confecção: depois de se baterem os ovos com o açúcar, aos quais se adiciona a farinha e o leite, é preciso deitar o doce (de preferência num prato de barro) às colheradas desencontradas. É igualmente importante que, depois de polvilhada com bastante canela, e depois de cozer em forno bem quente, a sericaia abra fendas.
Deve ser servida com ameixas de Elvas — um doce confitado (muito doce), feito com a variedade Rainha Cláudia Verde, que começou também por ser feito nos conventos da região e que inicialmente era uma iguaria que se destinava apenas às mesas mais ricas. Só há algumas décadas é que se começou a servir sericaia com ameixas de Elvas, mas a conjugação dos dois parece ter agradado e hoje é assim que é servida em grande parte dos restaurantes alentejanos. Prove-a na Doce História (loja de doces conventuais), Rua D. Pedro V n.º 1, em Lisboa (por encomenda) ou no Restaurante O Lagar (Rua da Vendoria, n.º 7), em Elvas. Alexandra Prado Coelho
Caldo de castanhas
À moda antiga, com chouriça e presunto
Até à chegada da batata, vinda das Américas com a expansão marítima, a castanha teve sempre um papel central na alimentação dos povos ibéricos. São, portanto, muito antigas as receitas que a utilizam e muitas delas ainda perduram, sobretudo em Trás-os-Montes, na Beira Interior e em zonas mais interiores do Minho, onde o castanheiro marca presença.
A par da sua degustação cozida ou assada, quase sempre como acompanhamento para as carnes, a castanha é também ainda hoje muito usada em caldos, seguindo a tradição culinária. As receitas não variam substancialmente, dependendo muito mais do maior ou menor enriquecimento com outros produtos, já que a base é a castanha cozida e o caldo daí resultante.
Nas receitas mais básicas, é-lhe apenas adicionada cebola levemente refogada em azeite e pedaços de pão torrado. Outras há em que se junta arroz ou ainda feijão, couve e nabo. Uma das mais antigas e características é proveniente de Trás-os-Montes e utilizada numa versão moderna e elegante pelo chef Marco Gomes, do restaurante Foz Velha, no Porto.
Chama-lhe Caldo de Castanhas à Moda Antiga, ou seja, enriquecido com carnes de fumeiro — o presunto e a chouriça de carne transmontana, a que junta ainda feijão branco e massinha de cotovelo. A base é o caldo de feijão e cebola, onde coze também a chouriça e o presunto, que depois são cortados em rodelas e tiras, respectivamente. Castanhas e massa fervem à parte, sendo juntos apenas na parte final de cozedura. O toque aromático e de elegância final é dado por umas tirinhas de hortelã, adicionadas já depois de terminada
a fervura. Já no prato leva um fio de azeite cru, que lhe acentua aroma e sabor. A tradição renovada. José Augusto Moreira
Chanfana
Cabra velha e tinto carrascão para a amaciar
Para além das versões mais ou menos romanceadas sobre as suas origens, e das disputas regionais sobre o local de nascimento, a chanfana é um cozinhado típico da área do Pinhal Interior Norte, na região Centro.
Elaborado tradicionalmente à base de cabra velha e vinho tinto da região, tem hoje versões actualizadas com animais de mais tenra idade e carnes mais macias. Mas isso são modernices, já que a chanfana, a genuína, exige cabra velha, vinho carrascão e o forno tradicional. E o caçoilo de barro preto, dizem também, mas isso é já coreografia, uma vez que a cor pouca influência terá no cozinhado.
Este é um prato de gente pobre e ambientes frios da montanha, que é também uma das mais requintadas celebrações da cozinha tradicional e da arte de aproveitamento culinário. À medida que conquistou o gosto dos urbanos, nasceram também as lendas que atribuem as suas origens à resistência heróica às invasões francesas, cujas tropas foram travadas na serra do Buçaco, nos alvores do século XIX.
É precisamente pelas serranias do Buçaco e da Lousã que se encontram as raízes do cozinhado, atribuindo-o ora à arte das freiras do convento de Semide, em Miranda
do Corvo, ora ao saber popular. Fosse para prevenir o saque das tropas invasoras ou, precisamente, porque deixavam apenas as cabras velhas, e cozinhado com vinho porque as águas teriam sido então envenenadas.
Bem menos prosaica e consistente parece, no entanto, a versão que aponta para a pobreza das gentes de outro tempo e uma economia rudimentar e de subsistência centrada no pastoreio. A cabra dava o leite, que alimentava as crianças e com o qual se fazia o queijo. E também cabritos que era preciso vender ou trocar para obter outros bens. Quando velha e imprestável é que era cozinhada, tendo o vinho, ácido e concentrado (que era o que havia) um efeito amaciador e de tempero (pelos açúcares) fundamental. A lenta assadura no forno e as gorduras derretidas, que depois de arrefecidas funcionam como envolvência protectora
e permitem o seu consumo pelos dias seguintes, são outro dos segredos desta maravilha culinária.
A receita inclui ainda umas cabeças de alho, folhas de louro e pimenta. Deverá acompanhar com batata cozida e grelos e é assim que é servida em restaurantes tradicionais, sobretudo nos concelhos de Miranda do Corvo e Vila Nova de Poiares, mas também pela Baixa de Coimbra, até à Mealhada e Buçaco. José Augusto Moreira