Cataplana de marisco do chef Bertílio Gomes
Cataplana de marisco do chef Bertílio Gomes

Livro

Temos o melhor peixe do mundo?

Um novo livro propõe-se provar uma ideia: Portugal tem o melhor peixe do mundo. E ensina-nos a aproveitá-lo melhor.

É literal? Era inevitável começar a conversa por esta pergunta. Fátima Moura acaba de lançar um livro chamado Portugal – O Melhor Peixe do Mundo, e queremos saber se o título deve ser entendido de forma literal. Sim, responde Fátima, convicta. Portugal tem mesmo o melhor peixe do mundo, e são vários, de médicos a chefs, a testemunhá-lo neste livro.

Mas será melhor contextualizar. "Portugal, o melhor peixe do mundo" é uma frase que foi cunhada por José Bento dos Santos, presidente da Academia Portuguesa de Gastronomia e responsável pela concepção do programa Prove Portugal, lançado pelo Turismo, e que pretende promover alguns dos pontos fortes da gastronomia nacional – entre os quais o peixe. Bento dos Santos é coordenador deste livro, editado pela Assírio & Alvim.

“Pretende-se que a frase fique no ouvido, que se torne uma marca que leve as pessoas a interiorizar esta ideia”, confirma Fátima Moura. “Pode parecer ousado, mas o próprio livro é um testemunho disso, dado por biólogos, professores de nutrição e que tem o clímax nas receitas dos chefs”. Chefs portugueses, mas não só. Lá está, por exemplo, o espanhol Ferran Adrià, neste momento provavelmente o mais famoso do mundo, mesmo depois do seu restaurante, o elBulli, ter fechado para abrir caminho a novos projectos.

Comecemos então pelos factos científicos. “Portugal tem, em termos de espécies marinhas, o melhor de todos os mundos”, explicam Ricardo Serrão Santos, director do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores e Filipe Porteiro, investigador na mesma universidade. Tem “uma ecorregião de variedade e biodiversidade acrescidas” e isto deve-se à “confluência de elementos tropicais vindos do Sul, com as influências frias e temperadas dos mares do Norte”, o que faz com que “a diversidade ecológica das espécies comerciais seja imensa”.

Não só os peixes e mariscos podem alimentar-se todo o ano graças à abundância de fitoplâncton e zooplâncton na zona atlântica, como a pescaria de pequena escala, de linha e anzol, e pequenas redes, nunca abandonada pelos pescadores portugueses, tem permitido “manter o sabor e a variedade”.

“Temos muita, muita, muita, variedade de peixes”, sublinha Fátima Moura. E o que é curioso é que, sendo os portugueses grandes consumidores de peixe – fomos no passado e continuamos a ser hoje, diz a autora – não conhecemos bem os tipos de peixe que temos à disposição. “As pessoas gostam imenso de peixe, mas se o virem inteiro muitas vezes não conseguem distinguir o robalo da dourada ou a garoupa do cherne”, o que é tanto mais estranho quanto nos nossos mercados o peixe continua a aparecer inteiro.

A tradição da venda no mercado merece, aliás, um capítulo do livro, que recorda as peixeiras do antepassado da Praça da Ribeira, quando este funcionava perto da Casa dos Bicos, e o Tejo vinha quase até ali. Já nesse tempo (como mostra um painel de azulejos do Museu da Cidade) a variedade de peixes disponíveis era imensa.

“Há dezenas de variedades regionais”, diz Fátima Moura, o que pode ajudar a explicar algum do desconhecimento. Só nos Açores há perto de 600 tipos de peixe diferentes. E, inevitavelmente, alguns são muito valorizados e outros quase esquecidos. Há muito peixe bom ao qual não damos valor? "Está a falar da cavala?", pergunta Fátima, sorrindo. "É que a cavala começou recentemente a ser recuperada pelos chefs e está, por essa via, a ganhar um estatuto que não tinha".

Mas é preciso ter algum cuidado, alerta. Se uma variedade de peixe fica de repente na moda pode começar a haver uma procura excessiva e isso acaba por afectar os stocks. A cavala pode ser um exemplo. “Achamos que há imensa, mas no ano passado atingiu níveis preocupantes de sustentabilidade”.

O conselho que Fátima Moura dá é que não pensemos tanto em espécies mas respeitemos os ciclos naturais e vejamos o que há mais em cada ano e em cada época, para que o consumo não ameace a variedade. Sugere mesmo que se crie uma distinção para os restaurantes e os chefs que demonstrem maior preocupação com as questões da sustentabilidade.

Quanto às formas de cozinhar, também não faltam opções. “A maior parte da oferta nos restaurantes portugueses é em grelhados”, constata. E é natural que assim seja, porque é uma forma de cozinhar que respeita as qualidades e o sabor do peixe, e está muito associada a uma refeição perto do mar, acompanhada por um vinho branco fresco. Mas podemos variar. “Temos tradição de fazer peixe de muitas maneiras, desde peixe no forno aos antigos rissóis de peixe que já quase não se vêem em lado nenhum, passando por exemplo pela cataplana”.

E não se pense que só se pode comer peixe no restaurante porque cozinhá-lo em casa é muito complicado. Nada disso, diz Fátima Moura. “O peixe tem um tempo de confecção muito reduzido. Em 20 minutos faz-se uma cataplana em casa.” A parte mais complicada, que seria arranjar o peixe, é feita no mercado ou mesmo no supermercado.

E quem estiver sem imaginação pode sempre inspirar-se nas receitas que os chefs propõem neste livro. Talvez nem todos sejamos um Adrià, que aqui apresenta um Shabu-shabu de pulpitos (mini-polvos), ou um Joan Roca, do El Celler de Can Roca, em Girona, Espanha, que apresenta uma receita de “escudella” de bacalhau, ou um Jean-Michel Lorain, do La Cotê Saint Jacques, em França, que cozinha um robalo levemente fumado com caviar sévruga.

Mas entre as propostas de Bertílio Gomes, José Avillez, Leonel Pereira, Paulo Morais e Vítor Sobral, há também receitas mais simples. E há também um capítulo que ensina a usar os vários métodos e técnicas de cozedura – selar, fritar, grelhar, selar, cozer em água ou em vácuo.

E, para acabar de vez com as dúvidas, há ainda um capítulo que nos ensina a distinguir os peixes – assim, da próxima vez que a peixeira nos apresentar um peixe-galo, vamos poder dizer (casualmente, como quem soube disto toda a vida) que este tem uma mancha preta no meio do dorso porque, diz a lenda, seria a marca deixada pelo indicador e polegar de São Pedro quando segurou num neles.