Teodorico e as Mães Cegonhas
Tenho duas mães. Qual é o mal?
Uma criança abandonada é adoptada por duas amigas. Ganhou uma família e diz que tem duas mães. Nem toda a gente o aceita. É um livro, mas podia não ser.
Teodorico e as Mães Cegonhas, escrito por Ana Zanatti, ilustrado pelos Storytailors e lançado em Setembro, teve mais uma apresentação ao público. Desta vez, destinada aos adultos. Num fim de tarde em Lisboa, no atelier dos criadores de moda, falou-se de amor. Valter Hugo Mãe foi o primeiro. E disse: “Ser-se pessoa deve assentar na capacidade de gostar, porque só no afecto se justifica a resistência perante tanta dificuldade da vida. Ninguém quer conquistar seja o que for para o fruir na solidão. A felicidade implica o outro ou a expectativa do outro, e quem se desmobiliza nos afectos desistiu de ser feliz. Em certa medida, quem desistiu dos afectos desistiu de ser gente.”
O escritor afirmou que “o livro Teodorico e as Mães Cegonhas sonha com quem quer ser melhor” e que a sua “principal preocupação radica no pedido honesto para que tiremos a cabeça da areia”. Lembrou ainda: “A questão dos casais de pessoas do mesmo sexo é premente, não é nova, é finalmente reconhecida, e lidar com tal realidade tem de passar pela maturidade geral dos cidadãos para com o assunto. Levar aos miúdos a mensagem fundamental de que os adultos se amam é elementar e explicar aos miúdos que o amor é diverso tem de ser como lhes dizer que há carros e aviões e barcos, mas que todos são meios de transporte. O desassombro em relação ao tema será sempre seguido pela naturalidade dos miúdos. Porque o preconceito pertence aos adultos, as crianças vão sempre amar quem as ama, muito antes de saberem o nome das coisas.”
Considerando o texto de Ana Zanatti “uma abordagem subtil”, está convencido de que, “se não explicarmos às crianças o que está em causa, elas vão achar a coisa mais simples do mundo que duas amigas gostem de viver juntas e cuidem de um menino que aprendeu a gostar também delas”.
O livro começa assim. "A Cegonha Branca e a Cegonha Rosa eram muito, muito amigas. Sentiam-se tão felizes na companhia uma da outra que decidiram morar no mesmo ninho e viajar juntas todos os Outonos quando migravam da Europa para África, onde passavam o Inverno."
Ninguém adopta por obrigação
A autora e actriz disse ao Life&Style que “gostava que este livro fosse entendido como um convite aos leitores para passarem a ideia de que toda a criança deve crescer num ambiente de amor, compreensão, tolerância, bem como ser protegida de qualquer preconceito”. Para Ana Zanatti, “a relação afectiva dos adultos vive enquanto existe afecto entre os parceiros”. Esse afecto “pode muito bem ser entre duas pessoas do mesmo sexo”. Também elas “podem ter um desejo profundo de desempenhar a função parental e por isso se disporem à supervisão de psicólogos, assistentes sociais e outras entidades”. E não tem dúvidas: “Ninguém adopta por obrigação.”
Mais adiante dirá: “A possibilidade de procriar não confere a ninguém competência para educar. Nem todos os pais biológicos têm vontade e capacidade para criar um filho, como se vê pelo número de crianças acolhidas em instituições. Quem garante os reais interesses da criança são aqueles que se responsabilizam por cuidar e que mostram que são capazes de assumir com amor as funções de pai e mãe.”
Já no texto que lera durante o lançamento tinha argumentado: “Se fôssemos indagar numa escola quantas crianças vivem hoje com o pai e a mãe biológicos, ainda casados e no seu primeiro casamento, duvido de que encontrássemos muitas. Não há sociedade que não esteja sempre em mudança e a convidar-nos a uma constante reciclagem criativa.”
Teodorico, o protagonista da história, a dada altura é levado para uma instituição e vê-se ridicularizado pelos companheiros com quem partilhava “aquela casa imensa onde o enfiaram com muitos outros meninos que não sabiam dos pais ou cujos pais não queriam saber deles”. Doía-lhe que troçassem das suas duas mães. Zangado, respondia: “E vocês, que tiveram pai e mãe, estão aqui porquê? Que família é a vossa, afinal?” E ficava triste por a sua família não ser aceite como tal.
Vistos de perto, somos todos monstros
Valter Hugo Mãe falou também da sua defesa por “uma sociedade de aceitação, nunca de tolerância, porque tolerar implica que os certos permitem em determinadas circunstâncias os que diferem do que é certo”. Para o escritor, “a sociedade tem de progredir para a aceitação da diferença como algo que a natureza define, sem condenação nem maldade”. E acredita que “a natureza é diversa e imaginativa, a nós, gente que pouco pode criar e decidir, deve caber-nos sobretudo a humildade da aceitação”. Por isso, “uns hão-de ser canhotos, outros hão-de ser anões, outros hão-de ser carecas, outros hão-de ser estrábicos, outros hão-de ser homossexuais, pansexuais, não-sexuais, insondáveis e sei lá que mais, mas em todo o caso, como dizia alguém, vistos de perto, somos todos monstros”. E apelou ao respeito “entre nós, os monstros”.
Revelou ainda as suas perplexidades: “Nunca compreendi o que aflige as pessoas na homossexualidade vizinha, porque se o coração do vizinho não dói no meu, o rabo do vizinho também não dói no meu. O que me interessa nos vizinhos passa mais por reconhecer que genericamente se portam com equilíbrio mental. Nunca penso em regras para lhes disciplinar o amor.”
Disse crer “que a maioria até já nem se recordará muito bem do amor, o que é a maior das penas”. E sugeriu: “Devíamos pedir aos vizinhos para amarem, nunca para se reprimirem. Que se amem e que sejam felizes. Eu, como o Charlie Chaplin daquele discurso tão perfeito, também não quero ser imperador do mundo e não quero tirar nada a ninguém.”
Parentalidade não é um direito, é uma responsabilidade
A autora de Teodorico e as Mães Cegonhas pede que se entenda “a parentalidade não como um direito, mas como uma responsabilidade, assumida quer por casais hetero, quer por casais homossexuais”. Porque “não é a orientação sexual que nos confere maior ou menor capacidade para educar”.
Ana Zanatti diz que “está mais que provado que as crianças criadas em famílias homoparentais não apresentam desvios na formação da sua personalidade” e que estão sujeitas aos mesmos ambientes hostis que as provenientes de casais heterossexuais, seja com base nas diferenças sociais, raciais ou outras. “Basta ver quantas crianças são vítimas de bullying por terem as orelhas grandes, serem gagas ou serem gordas.” A preocupação deve incidir sobre “o que se passa na vida de uma criança, em vez de nos ocuparmos em verificar se é de uma família tradicional ou não”.
E não compreende por que motivo, "sendo o amor o grande pilar de uma família e tendo as relações afectivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo sido reconhecidas através da recente lei que lhes permite o casamento, lhes é vedada a adopção". Ao não ser reconhecido a estes agregados o estatuto legal de família, "as crianças educadas no seio de uma família homoparental só têm um pai ou uma mãe reconhecido por lei, o que lesa os direitos de pelo menos um deles".
Um menino grita para o Teodorico: "Duas mães não formam uma família!" Resposta do rapaz: "Ai não? E o teu pai e a tua mãe formavam? Onde é que guardas o amor que eles te deram?" As suas palavras provocavam silêncio nos outros e arrependimento em si próprio, por "dizer estas coisas àqueles meninos infelizes abandonados pelos pais".
Uma história prismática
Os criadores de moda Storytailors (João Branco e Luís Sanchez) identificaram-se de imediato com o universo da narrativa e aceitaram estrear-se na ilustração fora dos tecidos. João Branco explicou o processo: “Fomos lendo e seccionando a história, que é multifacetada, prismática. Consoante a forma como olharmos para ela, podemos interpretar uma coisa diferente. E há o tema muito polémico de um casal homossexual que adopta uma criança, que depois é discriminada por ter pais atípicos.”
Agradou-lhe o facto de a história não ter sido adulterada por se dirigir a crianças: “Muitas vezes, os textos de literatura infantil e os contos populares e de fadas são suavizados para serem contados de forma diferente às crianças de hoje. Na sua origem eram bem fortes. Violação, mutilação ou outros temas agressivos entravam nas histórias e eram contados às crianças como fazendo parte da vida.” O estilista estranha o facto de “um assunto como este, o da adopção, que não é cruel, agressivo ou violento, se tornar motivo de discriminação”.
Tal como nos trabalhos de design de moda, a divisão de tarefas dos Storytailors foi idêntica: o desenho, o traço, é sobretudo feito por João Branco. “Fizemos primeiro a estilização, numa espécie de storyboard, e mostrámos à Ana [Zanatti]. Ela gostou e avançámos.” Usaram grafite, aguarelas, colagens de papel de seda e outros materiais. Luís Sanchez ocupou-se das aguarelas e da maior parte das colagens para o preenchimento dos desenhos. Um e outro fizeram certas artes finais e retoques de acordo com os seus talentos. “Como se fosse um vestido.” Gostavam de repetir a experiência, “mas com uma história tão boa como a da Ana”.
Em termos de imagem, optaram por dois registos. “Um muito doce e orgânico e depois um muito contrastado, quase tribal, e em que as cores suaves desaparecem. Saímos do sonho para o medo.” Por analogia: “Representam fases da vida por que passamos, não necessariamente na infância, mas de que só temos consciência mais tarde. Baldes de água fria, situações que nos são impostas sem que nada tenhamos feito para as provocar. Aparecem-nos como uma inevitabilidade. E somos levados a pensar: afinal que jogo é este? Não me lembro de ter contribuído para o que me está a acontecer. Quem me poderá dar um livro de regras para lidar com isto? O mundo é agressivo para mim e eu não sei porquê.”
E o Teodorico bem esperneou e esbracejou e berrou pelas mães que não lhe serviu de nada. Foi levado para longe da sua querida família sem lhe poder dizer uma palavra.
Medo de que os filhos sejam homossexuais
Quase no final do texto que Valter Hugo Mãe escreveu para a apresentação, lia-se: “Estou convencido de que muitos pais não dizem aos filhos que existem casais homossexuais porque têm medo de que eles queiram ser homossexuais. E estou convencido de que isso é como ofender a inteligência afectiva das crianças que, como qualquer um de nós, hão-de ser obrigadas a seguir a sua natureza independentemente do que se lhes esconda. Este livro de Ana Zanatti é o amigo fundamental para a conversa que todos os pais precisam de ter. É o mote perfeito para que se conte às crianças que as famílias são de todas as maneiras e que de todas as maneiras só se validam pelo amor e pelo respeito.”
Na mesma linha se pode enquadrar a citação de Goethe que a autora escolheu para encerrar a apresentação do livro: “Só é possível ensinar uma criança a amar, amando-a.”
A conclusão de Valter Hugo Mãe: “Eu já não acho que a aceitação dos direitos LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero] seja uma utopia, porque já não penso que a humanidade seja uma utopia. A cada passo encontro gente de uma beleza imensa, e nem que a economia nos tolha o juízo, os estafermos nunca terminarão com as pessoas de boa fé. A humanidade há-de cumprir-se, há-de existir, e este livro é um pé português que sobe um degrau. Espero que aproveitemos todos o convite para subirmos um degrau também.”
No final da história, as duas cegonhas recuperam Teodorico. Vão buscar o filho à “casa imensa” e ainda conseguem unir à família outro rapaz abandonado. “E lá em baixo foram muitos os meninos que, ao vê-los, desejaram naquele momento ter duas mães assim.”
É um livro. Mas podia não ser.
Teodorico e as Mães Cegonhas
Texto: Ana Zanatti
Ilustração: Storytailors (João Branco, Luís Sanchez)
Edição: Objectiva
32 págs. €13