Miguel Manso

21 Candidatos, 7 Maravilhas Gastronómicas

O segredo é a alma: Pastéis de Belém

Não vale a pena tentar. Muitos falharam antes, e nós falhámos também. Não há truque nem persistência que arranque o segredo dos pastéis dos donos da confeitaria que os fabrica. No país dos pastéis de nata, quem tem um segredo é rei.

Há nesta história qualquer coisa que lembra uma visita à oficina do Pai Natal, num lugar secreto do Pólo Norte, onde os duendes trabalham a fazer os brinquedos que os meninos pediram nas suas cartas.

Chama-se Oficina do Segredo o lugar onde não podemos entrar. É aí que trabalham os mestres do segredo - três das seis únicas pessoas no mundo que sabem o segredo da confecção dos pastéis de Belém (as outras três são o gerente da casa e dois mestres já reformados). E como é que provamos que somos dignos de partilhar o segredo?

Os mestres assinam um contrato de sigilo profissional, mas essa é a regra que menos peso tem", diz Miguel Clarinha, responsável pela comunicação da Antiga Confeitaria de Belém, em Lisboa. "A nossa forma de controlar a situação é garantir que cada novo mestre é alguém escolhido a dedo, que trabalha há muitos anos na casa. É uma aposta no carácter da pessoa que tem a ambição de chegar a mestre do segredo."

Quando alguém está para se reformar, um novo mestre começa a ser preparado. Não é um processo simples. São necessários vários meses de treino para o aprendiz se familiarizar, e a fábrica garantir que os pastéis continuarão a sair como sempre. "A gerência da casa está na mesma família há quatro gerações, mas não há registo de como chegou a esta família. O facto é que tem sido um negócio familiar e que a receita e a forma de produção artesanal se tem mantido exactamente igual."

Não vale a pena sonharmos com um velho pergaminho amarelecido e com nódoas de gordura, guardado num cofre fechado dentro da Oficina do Segredo. Pai Natal, mas não tanto. Miguel Clarinha sorri. "Se existe uma receita escrita, há muito tempo que está passada a limpo".

Muita coisa, aliás, ter-se-á perdido com o tempo desde que, segundo se conta, a receita foi inventada no Mosteiro dos Jerónimos. "Havia uma feira diante dos Jerónimos e era muito típico os monges comercializarem doces". Como em tantas outras histórias de doces conventuais em Portugal, com o encerramento do convento em 1834 o segredo do doce sai para o exterior, e o que se sabe ao certo é que a receita terá ido parar às mãos de um empresário chamado Domingos Rafael Alves que, em 1837, inaugurou ali a Refinação de Açúcar e Confeitaria de Belém Lda.

Nessa altura, o espaço da loja era apenas o da primeira sala, onde hoje está o balcão de atendimento ao público - a partir do qual sai aquela fila permanente que chega à rua e às vezes chega mesmo à esquina. São as pessoas (muitos turistas, que constituem cerca de 30 por cento da clientela) que vêm só comprar uma embalagem de pastéis. Os outros, os que os comem logo no momento, enchem as várias salas, no labirinto de espaços que se estende para a parte de trás da confeitaria, e onde há sempre uma azáfama de empregados a levar pratos cheios de pastéis para as mesas.

"A confeitaria foi ganhando espaço ao longo dos anos", conta Miguel Clarinha. "Mas as plantas mais antigas que temos são dos inícios do século XX e nessa altura já tinha um espaço alargado." A cidade estava a crescer. Com o barco a vapor e a linha do eléctrico, os lisboetas iam cada vez mais até Belém, e paravam na confeitaria para comer um (geralmente mais do que um) pastel.

Azáfama não pára

Em Dezembro a oficina do Pai Natal deve ser uma enorme azáfama. Aqui, a azáfama não pára nunca. Há 160 pessoas a trabalhar e a confeitaria não fecha em nenhum dia do ano. Da zona da confecção, saem milhares de pastéis, que se estendem pelos tabuleiros negros. Quando são retirados dos fornos vêm quentíssimos (cozem a 400 graus durante cerca de 20 minutos), parecem pequenos souflées, e têm que ficar 15 minutos a arrefecer. Duas mulheres tiram-nos da forma, virando cada uma com um gesto rápido, e colocam-nos casados a dois e dois no tabuleiro que segue para o balcão.

Durante a manhã, outras mulheres estiveram a colocar a massa nas formas, à mão. Esta parte também tem o que se lhe diga, embora não seja segredo. "A massa tem que ser colocada na forma de uma maneira especial que permite que as folhas sejam circulares e que a massa se separe e fique estaladiça." O creme - o tal que sai da Oficina do Segredo - é colocado dentro da massa por uma máquina. Uma cedência à modernidade que, diz Clarinha, em nada compromete o lado artesanal do processo.

País do pastel de nata

E pronto, é só isto - e no entanto é um negócio impressionante. Vende-se uma média de vinte mil pastéis por dia, e já se chegou a vender num só dia mais de 50 mil. Os pastéis de Belém chegaram aos 21 finalistas do concurso para escolher as maravilhas da gastronomia portuguesa, mas na realidade, não precisam da publicidade. Já são uma das imagens de marca de Portugal, usados em campanhas de turismo, ou em capas de livros sobre o país. Todos os estrangeiros que visitam Lisboa vão comer as custard tarts de Belém.

E, no entanto, Portugal é o país do pastel de nata. Há pastéis de nata em todos os cafés, são vendidos nas praias (é certo que já um pouco destronados pelas bolas-de-berlim), são oferecidos nas recepções oficiais. É por isso que muita gente se indignou ao saber que o escolhido para o concurso das maravilhas tinha sido o pastel de Belém, por se tratar de uma marca comercial. Miguel Clarinha estabelece a diferença: "O que fazemos aqui não é um pastel de nata. É por isso que nunca entrámos no concurso para o melhor pastel de nata. Aliás, nunca encontrámos outro com estas características.

Mas onde há um segredo há sempre quem o queira descobrir. Por isso, os "espiões" não desistem de tentar. Não faltam na Internet relatos do mistério que rodeia os pastéis de Belém, com longas explicações mais ou menos filosóficas sobre a diferença entre os pastéis de nata e os de Belém.

Há receitas que são apresentadas como a do "verdadeiro pastel de Belém". Há relatos de tentativas frustradas, como a do padeiro franco-brasileiro Olivier Anquier, num artigo na Folha de São Paulo: "Tentei descobrir a receita do pastel de Belém. Entrei na fábrica, tentei arrancar o segredo de todo o mundo, foi uma piada! Pude fazer todas as imagens que queria, mas a receita não. [.] Como não consegui a receita, fui para Tentúgal e descobri outro pastel, o pastel de Tentúgal.".

Mas não desistiu: "O pastel de Belém é feito como qualquer bolinho, né? Como qualquer tortazinha, qualquer massa folhada, e dentro vai um creminho que depois passa no forno, que parece um pouco um creme de confeiteiro. E passa no forno, ele endurece e faz uma casquinha, meio douradinha.". E dá a sua versão da receita, aconselhando para o recheio um litro de creme de leite fresco [natas], 18 gemas de ovos e 18 colheres de açúcar.

No Globo vem outra notícia bombástica "Chef da Colombo revela segredo do legítimo pastel de Belém". Aí conta-se que Renato Freire, da histórica pastelaria do Rio de Janeiro, revelou no Rio Show de Gastronomia "o verdadeiro segredo do famoso pastel de Belém: o doce, que deveria ter a massa feita de nata, na verdade é feito de creme de leite".

Mas quem terá mais razão será o jornalista Sam Vincent, do australiano The Star, que, depois de relatar mais uma tentativa vã de arrancar a célebre receita ao proprietário da confeitaria, prova os pastéis e passa o resto do seu tempo em Lisboa a comparar diferentes pastéis de nata: "São todos deliciosos, mas não chegam ao nível dos de Belém. Falta-lhes alguma coisa; um certo segredo que até ser revelado vai garantir que os pastéis de Belém permanecem os mais saborosos de Portugal." No fundo é isso: o segredo é... o segredo.