21 candidatos, 7 maravilhas gastronómicas
Leitão da Bairrada: comê-lo é uma ciência exacta
Pensavam que comer um leitão da Bairrada era fácil? Há muito a aprender para fazer as coisas da forma correcta. Mas na região onde se assam e servem cerca de três mil leitões por dia, há quem nos ensine todos os truques. É um curso rápido e saímos especialistas
Como em tudo, também no leitão da Bairrada existem os puristas. E, se queremos fazer as coisas bem feitas, é com eles que devemos aprender. Atenção, portanto, porque Victor Oliveira, da Confraria do Leitão da Bairrada, e Joaquim Almeida, da Confraria das Almas Santas da Areosa e do Leitão, estão a explicar-nos como se deve comer correctamente o leitão, um dos 21 finalistas do concurso das maravilhas da gastronomia, que em Setembro anunciará os sete vencedores.
Os meus interlocutores aos quais se juntou entretanto o presidente da Câmara da Mealhada, Carlos Cabral erguem as vozes num coro bem humorado para que uma coisa fique claríssima: há o leitão da Bairrada e o leitão à Bairrada. E nessa ausência da letra está tudo aquilo que importa. Está, no fundo, esta evidência: existe um original e existem as imitações.
E estamos aqui para eles nos explicarem o que faz um original. A Churrasqueira Rocha, na Mealhada, casa fundada em 1978, tem matadouro próprio, nas traseiras. É aí que entramos, para Joaquim Luís, responsável do restaurante, nos explicar o processo. Está tudo impecavelmente limpo. Os leitões para esse dia foram mortos há horas, pelas sete da manhã, e aquilo a que assistimos é (felizmente) à descrição do processo mas sem animais.
Avançamos para uma primeira zona, dividida em espaços menores, com muros baixos, que é para onde os leitões entram. Numa das paredes, uma placa indica "leitões suspeitos", o que dá ao local um certo clima de sala de interrogatórios. Mas trata-se apenas de um dos vários cuidados a ter para garantir a qualidade do que chega à mesa. Se há suspeita de que alguma coisa não está bem com um dos bichos, este é posto à parte e, na realidade, poupado à sorte dos outros, que seguem para a fase seguinte.
É difícil dizer quantos animais são mortos por dia, explica Joaquim Luís, porque há grandes diferenças. "Hoje [uma quarta-feira] serão uns 15, mas no sábado já poderão ser 40." Se há uns anos muitos animais vinham de pequenos criadores da região, hoje, com as rigorosas regras de higiene e segurança impostas, muitos destes criadores desapareceram, e os leitões vêm de pecuárias com alguma dimensão em várias zonas do país.
"Não pode ser aquecido"
E aqui chegam pequeninos têm mais ou menos seis semanas de vida, e não deverão pesar mais do que 11 quilos, o que significa que depois de cozinhados terão quatro quilos, quatro quilos e meio (as raças mais usadas são a Bísara e a Malhado de Alcobaça, mas também a Bairradinus, que resulta de um cruzamento de Bísara com a Camborough). "É conveniente que o leitão esteja dois ou três dias a desmamar, tem que se lhe dar farinhas, milho, couve, que é o que lhe vai tirar o sabor do leite", explica Victor Oliveira, reconhecendo, contudo, que nem sempre isso é possível.
Uma das grandes preocupações de Joaquim Luís é a gestão do número de animais a matar por dia. "A carcaça não pode estar mais do que 24 horas no frio, porque perde qualidades." E o número de clientes pode ser difícil de prever.
O objectivo é que, quando o cliente se senta à mesa, a carne lhe chegue o mais possível próximo do momento em que saiu do forno. "O leitão só se deve comer de duas formas: quente ou frio. Não pode ser aquecido", avisa Victor Oliveira. "Tem que estar muito crocante por fora e a carne tem que ser dura e gordurosa", acrescenta Joaquim Almeida. E, no entanto, alerta ainda Victor, "não pode estar assado de mais, senão a carne torna-se mole".
E os especialistas lançam-se a recordar um ritual que havia nas casas senhoriais: "Antes de o leitão ser servido, o assador vinha com ele para o apresentar à pessoa mais importante da casa que, com um golpe de um prato de porcelana, separava a cabeça do corpo. Se a cabeça se separasse bem, dizia: 'Está bem assado, pode servir.'"
Mas isto são rituais antigos, que dificilmente se poderiam manter na Mealhada, onde, segundo o presidente da câmara, já existem hoje 54 restaurantes a servir leitão, isto sem contar com os assadores, que não funcionam como restaurantes (em toda a região da Bairrada, calcula-se que existam mais de 200 restaurantes e mais de 100 assadores, a servir três mil leitões por dia, podendo um leitão alimentar 12 pessoas). Um fenómeno que começou por volta de 1910, com dois restauradores "o avô do Pedro [hoje o restaurante Pedro dos Leitões], que era o Álvaro Pedro, e o António Marcelino", este último especializado nas sandes de leitão. "Os meus avós já se lembram de comer leitão quando ainda nem era à beira da estrada, quase nem automóveis existiam", conta Carlos Cabral, rindo.
O negócio foi crescendo, mas no início dos anos 90 houve um susto. "Pensou-se aqui que quando abrissem a auto-estrada [A1] os restaurantes estariam desgraçados, porque as pessoas deixariam de vir pela Estada Nacional", recorda o presidente da câmara. "Mas verificou-se o contrário: a Mealhada deixou de estar a três horas do Porto para passar a estar a 45 minutos e Lisboa deixou de estar a um dia de distância para passar a estar a duas horas. Muita gente passou a vir aqui de propósito para comer o leitão."
E continua a ser assim. Dos dois lados da estrada, restaurantes anunciam o famoso leitão e não é só na Mealhada, mas em toda a região da Bairrada. Está-se, aliás, já a apostar numa promoção conjunta dos produtos da região o leitão e o vinho. A antiga estação da Curia, onde antes chegavam os visitantes para uma temporada nas termas, foi recuperada (o projecto original é do arquitecto Cottinelli Telmo, com painéis de azulejos de Jorge Barradas) e transformada na sala de visitas da Rota da Bairrada e mesmo as termas promovem, a par dos tratamentos com água, provas de vinhos e visitas a adegas.
Batatas fritas ou cozidas?
Mas voltemos ao leitão. Íamos ainda no início da visita ao matadouro. Depois da "recepção", os animais passam para a sala seguinte, onde recebem o choque eléctrico que os mata, após o que são pendurados, sangrados e lavados. De seguida são mergulhados numa panela, onde levam o escaldão que permite tirar-lhes o pêlo. No fundo, são depilados, processo que no passado era feito com uma esfrega dada pelo preparador, usando uma serapilheira.
Por fim são-lhes tiradas as vísceras um processo sempre acompanhado pelo veterinário e os bichos são enfiados nos espetos (antigamente era um pau de loureiro, hoje é um espeto de inox), cobertos com um molho feito de banha, pimenta, alho e sal, que é posto também no interior, e estão prontos a entrar num dos cinco fornos de lenha da Churrasqueira Rocha.
Estamos novamente em território de especialistas. "O tipo de lenha é muito importante", explicam-nos os dois confrades. Aqui trabalha-se com lenha de videira (complementada com pinho), porque "os aromas são completamente diferentes". E fundamentais nesta fase são "as mãos sábias do assador". Um dos fornos abre-se, o calor chega-nos à cara, o leitão parece praticamente pronto, mas ainda precisa de uma hora no forno.
Ainda visitamos a padaria do restaurante, onde o pão é feito também diariamente em forno de lenha. E por fim sentamo-nos à mesa. O leitão aparece, quente, crocante, assado no ponto. O animal deve ser cortado em pedaços pequenos, com uma tesoura especial, e os pedaços não devem nunca ser empilhados na travessa, frisam os especialistas. "Se um pedaço com febra ficar em cima da pele, esta perde logo o estaladiço e fica mais apimentada."
A relação entre a pele e a febra é essencial (que não se cometa a heresia de pôr a pele de lado). Vêm as batatas fritas (apesar de os dois confrades terem passado as últimas horas a defender que o leitão deve ser comido com batata cozida, porque com a frita junta-se gordura a gordura), as rodelas de laranja (outra heresia imperdoável seria servir o leitão com limão), a salada de alface simples. E, para acompanhar, o espumante neste caso da região, Quinta do Valdoeiro, casta Baga/Chardonnay.
Não está a ser fácil convencer os comensais a trocar a batata frita pela cozida apesar de até o boletim do Iguarias do Centro, do Turismo, ter na capa uma bela batata cozida com pele, à qual está encostado um reluzente pedaço de leitão. O espumante, esse, entrou com mais facilidade nos hábitos.
E se ao fim do dia sobrarem pedaços de leitão, podemos sempre voltar para comer croquetes ou uma feijoada de leitão. Despedimo-nos dos confrades, que nos deixam um último conselho para que a experiência de comer um leitão da Bairrada (não esquecer o da) seja perfeita: "Vá sempre cedo o leitão não pode esperar pelo cliente."
Receita
Para o tempero de um leitão com cerca de oito quilos devem usar-se duas cabeças de alho, cerca de três colheres de sopa de sal, uma colher de sopa de pimenta branca, salsa, 50 gramas de toucinho, 50 a 100 gramas de "unto" (manteiga de porco), folha de louro. Misturam-se os ingredientes num almofariz até obter uma pasta. Quando o leitão está limpo, é enfiado numa vara e barrado por dentro e por fora com esta pasta. Cose-se com um fio de linho ou algodão e picase a pele para ficar estaladiça e fazer sair parte da gordura. Leva-se a assar em forno de lenha, usando de preferência eucalipto ou vides, até 300 graus. O leitão deve assar lentamente durante cerca de duas horas, período em que vai sendo virado. Está pronto quando se solta da vara (quando a rodamos, o leitão não acompanha o movimento).