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Vivo, moribundo, morto

Será que Herberto Helder já não sangra mais, e não conseguiu entrar no poema? Adiante: depois dele, o pó da terra continuará a respirar “o cabelo da rapariga estreita”

e aqui jaz acomodado, oitenta e três, parece que pelo
menos sem grandes achaques físicos, o vosso
burro com palha pouca e fora de uso, quer dizer
uma reforma de pilha-galinhas e poeticamente
enterrado vivo, e sem poder visível e sem contacto
com o invisível, o burro sim com o nome a fogo
na testa: eu sou apenas deste mundo, isto é: estou
praticamente morto, mas todo vosso: nenhures é o
meu pouso.


Sem mestre é ofício poético: ter de se arranjar, fazer das tripas coração. Para os que se aproveitam, fartar vilanagem. Herberto Helder não é dos que diz: “nascido em tal dia, coisa que infelizmente não se pode evitar”, é dos que nem o demo ousa ouvir. A morte sem mestre, sim, aprender a morrer, não: mesmo quando abre as veias e deixa correr o sangue, não é para surpreender o quão pouco custa morrer (como Séneca, e de outras maneiras também Montaigne, Espinosa, Wittgenstein), mas para que algum nome se deixe ainda agarrar, talhado entre os dedos feridos. O poeta “queria fechar-se inteiro num poema”, desejo soberano e humílimo desde que “que porque morro”, desde que não está a aprender a morrer, poema nunca primeiro, sempre já nascido de outro, “lavado em língua ao mesmo tempo plana e plena”, que retorna, umas páginas adiante, dispensado o verbo do desejo e recusada a língua plana, em ímpeto mais duro de tão contido: “encerrar-me todo num poema,/ não em língua plana mas em língua plena”. Isto porque “já dentro de mim não caibo,/ já sou maior que mim mesmo”.

Nenhuma provação metafísica, só rosas esquerdas (roubadas, sabe-se), mãos, dedos canhotos, bic cristal (podem tentar reduzir isto a teses filosóficas, que o conceito abocanha tudo, só que, mal penetra nesta “gataria de poemas: sem dono e sem peixe certo”, recua diante de um tal assanhamento: “poemas quando se vai a mão/ e bufam e arranham logo”). A religiosidade é irreligosa como convém a um “burro velho”: “Pai, Pai porque me abandonaste?”, “e mais uma vez Eli, Eli, lamma sabachtani”, chamamentos repetidos que são já um tradendum, em cuja agonia de invernal abandono se escuta uma paródia inextinguível.

Sempre a falar consigo, o poeta desdobra-se em segunda: “e tu olhas entre as coisas pequenas/ e para onde olhas é essa parte alumiada toda”; e também em terceira: “que morte e vida troca ele em tudo/ e a que obscura glória se refere?”; sempre vazando na primeira: “e eu sensível apenas ao papel e à esferográfica:/ à mão que me administra a alma” (e quantas vezes se administrava em Servidões). As três pessoas correm por dentro umas das outras, assembleia endoidecida e preclara: coro em que um, visionário, toma a dianteira, multiplicando-se em todos, em que outro fica para trás e assiste, e ainda um outro, que não pára de se mover entre o segundo e o primeiro, golpeia as cordas do coração.

As servidões não têm acabamento, mesmo continuando, ou apesar de continuar, ele um “bruto/ o que não entendeu o sinal”, “eu que em verdade não sei nada senão que me pareceu um/ momento que estava pronto para ver”. Talvez os elementos o ajudem, cair num fundo, arder num fogo. Mas logo esta impreparação para a morte de novo lhe dá aquilo que ele não pediu e finge que aceita: “purificação do esterco, oh glória que nunca ninguém me/ prometera/ nunca nunca:/ uma espécie de musa ou de puta”. 

Será que ele já não está vivo, que não sangra mais, e não conseguiu entrar no poema? “Será que nenhum poder me devasta ainda”, “o teu novo nome”, “nome terreno”, nome secreto (como o que os pais judeus davam aos seus filhos, abrindo um recesso à vida deles, ignoto de todos os demais): “isso: coisa amada quanto o alvoroço mortal deste fim de idade:”. “e eu não possa dizer nada”.

Tal como no caso do jardim místico de Ain’t talking, a mula dele está doente, o cavalo cego, e ninguém terá misericórdia. Para se proteger, ficando mais exposto, eis que se dirige ao “bom leitor impuro”, aquele que conhece a metamorfose de “qualquer erro de ortografia ou sentido” em “grão de sal aberto na boca” numa secreta dédicace. Assim se abre este livro: “nunca estive numa só linha a tão vertiginosa altura”. Está tudo dito: louvores “ao Anjo Príapo” — como estão longe dele “os anjos do Senhor, os pintaínhos” —, à “Nossa Senhora Côna”, estamos “em nossa primeira noite nos começos do mundo”. E assim se fecha (mesmo que não seja o último poema), com o grito: “eu sou apenas deste mundo” na elegia de si, A Elegia de um Burro (farsa teológico-política, para bom entendedor). 

Falemos dos que não morrem, esses “que sobreviveram à língua morta”, os poemas que rolam pelas idades, “coisas sumérias” que o esmagam “por assim dizer com a sua verdade última/ sobre a morte do corpo”: ele irá deixar de respirar, enquanto o pó da terra, esse, continuará a respirar “o cabelo da rapariga estreita”. Temos duas versões, uma, em que a primeira pessoa do singular se torna o vaso dos milénios, e outra, a do “entre nós dois”, única contemporaneidade: “tudo isso perdura em mim pelos milénios fora,/ disso, oh sim, é que eu estou vivo e estremeço ainda” e “tudo isso perdura entre nós dois pelos milénios fora,/ e delas estremeço eu ainda”. Ele espera e teme que o poema que está a escrever dure um, dois, três dias, e sabe que canaviais, sangue, cabelos, voz, nomes, nada nos pertence e tudo retorna, o ar do pó está vivo.

Pouco mais de um ano depois, um outro livro, há quem murmure, ”lá está o cabrão do velho no deserto do último piso esquerdo”. Ele sabe, “o poema agora por exemplo não tem simbolismo nenhum,/ moro dentro dele sem força para respirar”, ele, de “mal com as academias por amor da língua portuguesa”, de mal com quase tudo e etcoetera eetcoetera, “então para acabar, agradeço como acabo: estupor velho e relho, /um bom sacana”. A antinomia a fazer da suas, a contradição com muita coisa idolatrada (pecado mortal) a corroer e a elevar o poema até àquele ponto em que se está a morrer, se deseja morrer, e não se quer morrer por causa dos canaviais sumérios, dos cabelos da rapariga estreita do tempo de Uruk e Gilgames. “é bom acabar mal com este petit monde à volta”, mas também por causa daquela mulher que vive nele e ainda não veio ao de cima: “a morta nele que de noite ressuscita,/ e pelo dia todo de cada dia da terra/ lhe rouba a alma,/ o ceptro/ o segredo de ser senhor de tudo”.

A glória, não a vã de mandar, mas a obscura e farsante, a que deixa ver o estaleiro, e ele não se importa, deixa andar, acto sacrificial, e de repente uma dentada, uma arranhadela, um uivo: “tão cara, Deus meu, que está a morte”, o meu reino por uma bilha de gás, e então aquilo, que ele “queria ver se chegava por extenso ao contrário”, vem ter connosco rebentando em luz e sombra: “força e pulsação, graça”.