Paulo Pimenta

Moinhos de Ovil

Não entra nos roteiros turísticos de um Douro de cinco estrelas todo ele igual. Mas é luxo sem luxo dentro. Nos Moinhos de Ovil, em Baião, cada um é aquilo que quer. Sem pressas ou regras.

Eduarda Santos lembra-se bem da sensação avassaladora que teve quando ali chegou pela primeira vez. O pai tinha arrendado a quinta para fins-de-semana rurais que matassem saudades de outros tempos e reunissem amigos e família. A filha, citadina convicta, foi do Porto àquela aldeia duriense apenas para conhecer. E, de repente, aquele pequeno rio de som aumentado, os pássaros e os cheiros, uma impressão de tempo suspenso.

— Pensei imediatamente que aquilo tinha de ser meu.

A terra é Eiriz, Baião. Vai-se de GPS ligado, não vão as estradas serpenteadas do Douro trair a orientação, mas a dica de chegada é dada ao avistar a bomba de gasolina. “Desculpe, sabe dizer-me onde ficam os Moinhos de Ovil?” E logo o sorriso aberto do trabalhador: “É já, já aqui. Vira à direita e chegou.” Na estrada nacional, apenas duas placas toscas, com o nome do lugar e a inscrição “acesso privado”. Estaciona-se à face da estrada e desce-se a rampa de terra batida ainda sem desconfiar do que ali virá. Passo atrás de passo, algo vai mudando. O ruído da estrada abafa-se perante o som da água que se precipita nas escarpas de um rio de poucos metros de largura mas cheio de vida. À volta, tudo é verde. Tudo é paz.

“Bem-vindos aos Moinhos de Ovil.” Eduarda vai atravessando a ponte de ferro que ali construiu para cruzar as duas margens. Antes de comprar a quinta, os moradores da aldeia faziam a passagem de pés no rio, por dentro da propriedade dela, quando queriam chegar à igreja local. E é por ali que continuam a cortar caminho — “agora pela ponte, obviamente.”

Não é preciso muito tempo para perceber que estamos fora dos destinos de agência de viagens catita ou balcões turísticos a vender mãos cheias de estrelas num Douro todo ele igual. Aqui há luxo sem luxo dentro. Há calções e t-shirt vestidos, chinelos no pé, sinal de telefone fraco e wi-fi zero. Sem pressas nem regras.

Eduarda perdeu as contas às datas. Sabe apenas que, depois da primeira visita à aldeia, há 14 anos talvez, não descansou enquanto não regressou para fazer uma proposta de compra. Recebeu-a Amélia, viúva do moleiro Abel, que durante anos fez ali farinha de milho para gente que muitas vezes só tinha aquilo para comer. E perante as certezas de Eduarda, a senhora de 92 anos que acabou por dar nome a uma das casas da quinta, simplificou: “Se isto tiver de ser teu, há-de ser.”

Por essa altura, os três moinhos eram quase uma ruína. Mas Eduarda já lhes via o potencial. Recuperou-os para os transformar numa única casa de decoração rústica, a respeitar a memória, mas de conforto aumentado e toque contemporâneo. Paredes de pedra pintadas de branco, quarto com salamandra, sala com varanda em cima do rio Ovil, cozinha que parece de bonecas, chão com “janelas” a deixar ver a água debaixo dos pés. Uns patamares acima na quinta e surge a antiga habitação do casal de moleiros, reconvertida num segundo recanto.

Durante alguns anos, não houve intenções comerciais no projecto. Eduarda pensava apenas na forma diferente como o tempo ali corria e queria aproveitá-lo junto da família e amigos. Mas há uns três anos pôs-se a reflectir. Se os seus moinhos eram um sucesso naquele círculo restrito, também o seriam num mais alargado?

Os Moinhos de Ovil são uma viagem dentro de nós. O cheiro a verde, a terra e a lenha, o aroma a café acabado de fazer ou a pão cozinhado no forno, despertam memórias adormecidas. Nas margens do rio, apetece ser criança de novo, baloiçar no pneu pendurado na ponte, deitar na rede suspensa no rio, seguir sardaniscas nos muros ou trutas na água, e esquecer que os dedos encorrilham com o frio depois de muitos mergulhos dados.

Ali, o nosso despojamento é realmente feliz.

O ritmo citadino está definitivamente desacelerado quando o almoço se anuncia. Vem num cesto de verga, tachos embrulhados em jornal com filetes de polvo e arroz do mesmo. “A dona Luísa fez questão de cozinhar, apesar de ser o dia de folga dela”, diz Eduarda como quem revela o espírito ali vivido.

Tivesse ela uma varinha mágica e usava-a para fazer mais gente apaixonar-se pelo Douro. É isso, na verdade, que procura. Sem fórmulas secretas, mas com a certeza de que é “em rede” que a roda se põe a andar. Por isso, o número de telefone de Luísa, a incansável dona do restaurante “O Alpendre”, a poucos minutos dali, está sempre à mão. Por isso, volta e meia liga à fisioterapeuta Cláudia Moreira e pede-lhe que acarinhe os hóspedes no spa exterior dos Moinhos. Por isso, o “Douro à Vela” de António pode complementar a experiência ali iniciada com passeios privativos no rio. Por isso, fez da “dona Palmira”, filha dos antigos moleiros, uma ajuda preciosa.

“Eu e os meus neurónios”

A noite cai e a varanda da Casa dos Moinhos, em cima do rio plantada, é o lugar onde apetece estar. Conversa em novelo, um livro, minutos com horas dentro. Fecham-se as portas de casa e o som da água a passar debaixo dos nossos pés parece chuva a cair lá fora. A embalar sono e sonhos. E, melhor do que o corpo a ceder a essa banda sonora, só mesmo o dia a nascer.

Sumo de laranja, cerejas colhidas no quinta, pão quente (receita de Amélia passada a Eduarda), queijos e café. O sol aquece e já o dilema é a escolha do local onde nos vamos render ao descanso. Pode ser no extremo da quinta onde o rio corre baixo, com cadeiras instaladas dentro de água, na “piscina natural no lado oposto da propriedade, numa casa na árvore improvisada, no pequeno “barco do amor”, na cama do spa com uma bóia gigante em forma de cisne como vizinha. 

“Os Moinhos são eu e os meus neurónios”, graceja Eduarda, Eduarda Moleira como se tornou conhecida. Cada pormenor da decoração ou mimo-surpresa ali encontrado é saído da cabeça dela. Como os doces que costuma deixar na minicasinha de madeira que mora numa nogueira da quinta, o esfoliante caseiro (mistura de café e iogurte) deixado na casa de banho ou a “caixa do mimo” cheia de cartas escritas à mão pelos viajantes. “Os Moinhos já davam um livro.”

Ali acima está a estrada nacional, uma aldeia pacata, o mundo de relógios postos. E o Porto fica apenas a 70 quilómetros, uma hora de distância. Alguém se lembrava disso?

A Fugas esteve alojada a convite dos Moinhos de Ovil